29 de agosto de 2009

O Teatro, o Ator e a Permissividade

Ir ao teatro constitui um ato de busca. Um espaço único, concebido e desenvolvido para acolher espectadores anciosos em ver suas mentiras encenadas, suas tragédias e deslizes representados. O fingimento que nos circunda, creio, é o principal agente causador desta prática que hoje tornou-se mais diversão do que reflexão. Não falamos a verdade. Precisamos da farsa, do argumento mentiroso e arguto; a verdade é tão absurda e cruel que preferimos muito mais estas formas de convívio, sendo regulados por padrões igualmente equívocados, sínteses de uma "segurança" que só a mentira dá. Institucionalizada como padrão estético , o irreal, o improvável e o mítico são nossas maiores referências. O exagero é a marca do belo, do desejado, e tudo aquilo que pareça ser o mais próximo do real, leia-se, daquilo que é feio, triste, patético e sincero torna-se o pior de todos os pecados , sendo evitado com nojo e vitalidade. O teatro vem a ser um local de contemplação daquilo que é o maior segredo, e mesmo assim a coisa mais notória, da humanidade: a mentira como forma de verdade única. O ator traz , entranhado em si, o engano geral, o erro de viver sempre de aparências, de esconder sentimentos; aquilo que desejamos falar a quem se passa, agir com quem se vive. Usando de total liberdade para assumir estas facetas no palco, o personagem, sob as luzes reveladoras da ribalta, expõe diante dos olhos fixos de uma platéia obscura, protegida pelo negrume da sala sem luz ( esta forma de colocar o público nesta posição incógnita é um dos pontos mais fantásticos desta cumplicidade) aquilo que ele é, sem máscaras ou rodeios. Cria-se aí um ponto chave. Eu - o público - permito incondicionalmente através do ingresso que pago a manifestação daquilo que não desejo ser, ver, sentir nem vivenciar, através do ator. Tudo o que diariamente coloco fora, no lixo do insconsciente, e que me permite viver sem maiores sensações de dor é reproduzido de maneira literal pelo personagem, articulado, respirado, sentido pelo sacerdote das farsas repudiadas, porém constantes. Esta permissividade que logo sujestiona passividade, porque não podemos criticar ou mesmo interromper uma cena em seu pleno desenrolar, dói, sangra velhas feridas, disponibiliza antigas neuroses e frustrações, mas transmite beleza, suavidade ao mesmo tempo. Aí entra a Arte. Somos arrebatados por ímpetos selvagens de nossos próprios desconsertos, e mesmo assim choramos, pagamos para assistir,aplaudimos entusiasticamente e voltamos para novos espetáculos. Esta manifestação tão rica nos aprisiona. Queremos saber quem somos, e o Teatro é, sem dúvida, a porta mais elegante, lúcida e permissiva, onde podemos espiar nossas dores , com a Arte necessária para suportarmos sem sucumbir.

1 Comentários:

Washington Machado disse...

Réplica dirigida ao texto “O teatro, o ator e a permissividade”:

Ir ao teatro, certamente, constitui em buscar uma reflexão, uma contemplação daquilo que é alheio e, ao mesmo tempo, aquilo que é de nós mesmos. Afinal o objeto em questão nesta linguagem artística, que surgiu com o fenômeno da comunicação e da observação dos costumes antropológicos, é o próprio ser humano; assim como nas religiões o objeto em questão é a existência de deus ou de deuses. Sendo a razão, as emoções e os conflitos causados pela disparidade dos próprios seres humanos a essência da antropologia e da metafísica; da psicologia e da psicanálise; deve-se ao teatro esta função de reconstituição da história em sua re-vivência empírica e elaborada do ser humano e de seus fenômenos naturais. No palco, o ator; na platéia, o público. – mas ambos estão compelidos a re-viver, ou seja, viver duas vezes a história para reforçar a idéia de que estamos vivos, inseridos no contexto da realidade e do místico. Não tratam-se de fingimentos, facetas, enganos, sentimentos escondidos, aparências ou mentiras encenadas para aliviar o peso da realidade, mas, trata-se do esforço em compreender de forma subjetiva e/ou objetiva o universo que nos rodeia (esforço não menos importante que o da filosofia e o da ciência); a Arte, que não permite definições acadêmicas, parâmetros, delimitações para suas funções, tanto sociais quanto antropológicas, segue livremente em virtude de sua própria existência. E o ator, o artista, não é nenhum sacerdote das farsas repudiadas, contudo, também não é nenhuma divindade supra-sensacional que merece aplausos, aliás, o aplauso é feito para si mesmo, é o agradecimento do público em virtude de sua satisfação (quando é sincero, é claro). Portanto em teatro tudo é permitido sem que tenha que haver uma permissividade alheia e mesquinha, quando na verdade não há uma verdade absoluta para se permitir ou não; ou seria finalmente livre senão houvesse críticos sem assuntos a dizer e querer privatizar-lo por meio de míseros ingressos pagos para buscar a si nas faces de outros personagens. Por fim o teatro não nos aprisiona; e não é apenas a beleza e a elegância que ele tem por meio da junção das linguagens artísticas da música, da literatura, das artes plásticas e cênicas que nos permite enxergar quem somos. Mas é a liberdade que tem o ator e o espectador para poder recriar a história, redefinir o tempo, tanto na escuridão da platéia quanto nas luzes da ribalta, para decidir, como os deuses, o futuro e o destino dos personagens, da vida.

Washington Machado.