11 de outubro de 2010

O Surdo-Mudo

Tornei-me, ó Deus, Surdo-Mudo...
Silêncio ao falar...
Silêncio ao ouvir...
A imperturbável posição, inflexível
De alguém que simplesmente cansou...
Tornei-me,ó Deus, pelo hábito, Surdo-Mudo...
À toda a desgraça humana...
À todo rito ruidoso...
À toda fé praguejada...
À toda ciência verborrágica,inútil e pós-moderna
À toda amizade forçada...
À todo dizer... 'Eu te amo'...
À todo ouvir... 'Não te quero mais'...
Tornei-me,ó Deus, Surdo-Mudo...
Qual humano sobrevive a isto?
Apatia,
Solidão,
Distância,
Estranheza,
Receio...
Aquele desconfiar canino...

... Fi-lo porque qui-lo?

Tornei-me, Grande Mito...
Um enorme Surdo-Mudo...
Este é o segredo dos deuses...

5 de outubro de 2010

Em Trânsito

Elas vão e vêm... as pessoas
Veículos de amor, de ódio,
De olhares marcantes, de palavras duras
De tédio e de vivacidade...
De ideias revolucionárias, que mudam tudo...
Sempre vão e vem...
Uma grande avenida, aclives e declives a permeiam...
Estradas dentro de cada um
Alguns carros invadem tua rua...
Derrubam teus muros, impenetráveis
Vão embora, sem prestar socorro algum...
Elas vão e vêm...
Não há guardinhas, nem lei que regule este ir e vir...
É caótico mesmo, e muitos se arriscam
Altas velocidades em busca do fim...
Outros andam bem devagar, sem manutenção...
Medo de pneus furados e vazamentos de óleo...
Elas sempre vão e vêm...
Muitos morrem na pista...
E quantos morrem!
Alguns vão embora e deixam saudades...
Outros chegam e pedem informação... acabam ficando...
Dia e noite, vão e vêm...
Este é o trânsito...
Quer uma carona?

9 de agosto de 2010

Crônicas Malfadadas do Jovem Capistrano - Do convívio social e o que esperar dele

Meu prédio situa-se numa movimentada rua do centro. Nem sei porque diabos vim parar aqui; todo este circular de gente desconhecida me deixa ainda mais solitário, mas uma solidão estranha.
Ninguém torna-se averso às pessoas por acaso; penso mesmo que, quem decide viver recolhido dos outros na verdade é a pessoa mais sociável que possa existir, pois não trava vivências com qualquer um, como a maioria. Animais como estes foram espremidos, marginalizados, levados a um exílio forçado pelas tolices que o mundo costuma oferecer aos pensantes, aos auto-críticos; eu bem que poderia estar agora mesmo, um sábado à noite com clima tépido, num pagodão suburbano, bastante comum nesta região da cidade, e verificar in loco as fêmeas todas, suas lascividades e interesses econômicos, movimentando o capital daqueles que querem gastar com uma boa bunda o seu mísero salário mensal, mas, pensando bem, é preciso mesmo um alto desprendimento antropológico para encarar tal tarefa, além de ser bastante tolerante e, se quiser, imbecil e neurastênico. Compro o pão e volto ao meu apartamento com a firme convicção de que fiz a escolha certa, vendo tudo pela janela de casa.
Naquela noite a campainha tocou. Nunca esperava visitas, ainda mais naquela hora. Seguia a perfeita lógica de que, se eu não tinha amigos próximos o suficiente para me abordarem em casa com suas visitas, eu poderia estar relaxado sempre, pois aquele evento jamais aconteceria. Mas naquela noite aconteceu. Alguém descobriu meu endereço, tocou a campainha, e esperava uma resposta minha; a única coisa que poderia fazer era olhar quem havia se atrevido a tanto. O olho mágico me revelou uma mulher loira, bem vestida e com ares de impaciência. Uma mulher... que porra é essa? Não tinha seguro, plano de saúde, não havia chamado nenhum testemunha de jeová para me guiar em algum estudo bíblico... uma mulher... olhei novamente e era mesmo uma mulher, loira, bem vestida... a campainha tocou novamente, e eu não poderia mais aguentar aquele barulho infernal. Entreabri a porta.
- Capistrano?
- Sim, o que deseja?
- Não lembra de mim?
Por que as pessoas sempre têm que recorrer a esta metodologia cretina de aproximação em uma situação esdrúxula como aquela? Claro que eu não lembrava dela! Não lembrava de ninguém com quem por ventura houvesse me relacionado, em qualquer âmbito sociológico, nas últimas duas semanas, e ela parecia estar vindo de um lugar muito mais longuínquo do que este.
- Não acredito que você não esteja lembrando de mim, Capistrano... sou eu, Júlia.
- Júlia? Não conheço nenhuma Júlia...
Claro que eu conhecia Júlia. Ela era uma colega de classe nos tempos da universidade. Bonita, corpo agradável, perfume caro e oloroso, mas intelectualmente fútil e tola, esta espécime sui generis tinha a aspiração imbecil de ser uma atriz. Era risível. Bastante popular entre os machos do bloco onde estudávamos, ela sempre arrancou sorrisos, lanches, suspiros e más intenções de todos ali, ávidos em pelo menos tocar suas ancas ou ver algum lance de decote ou calcinha; era a única coisa que teriam dela. Sua superioridade estética era incômoda para o restante das garotas, e se algum cara discursasse, de maneira bastante falsa, que não via sentido em toda aquela adulação, era um forte candidato a ficar com algumas sobras daquilo que os outros rapazes não tinham qualquer interesse.
Abri a porta e deixei que ela entrasse. Não havia mudado muito desde que nos vimos pela última vez, na colação de grau. Ela, como sempre, exuberante, um modelo aceitável de uma padronização do belo no ocidente; não se espantou ao ver que eu morava num casebre vertical, os móveis todos rotos, roupas íntimas jogadas a qualquer canto, pontas de cigarros e restos de pão recém devorado no chão da sala. Sentou-se e começou a falar, sem pausas, como era o seu costume odioso:
- Capistrano, me disseram que você estava morando por aqui, então resolvi fazer uma visitinha... sabe queels planos de me tornar atriz? Você sempre me ajudou tanto...
Ah, não! Puta que pariu! Mas que droga de mundo é esse?? Algumas vezes uma lição é apreendida de forma bastante rápida e indigesta, e aquela maldita porta jamais seria aberta novamente para uma mulher , seja lá quem for, mediante influência dos meus hormônios.

continua...

10 de julho de 2010

Crônicas Malfadadas do Jovem Capistrano - Apresentação

Permitam-me uma apresentação formal. Chamo-me Capistrano (minha alcunha completa não é necessária; um fragmento, que acho o menos feio do todo, já é o sufuciente); jovem ainda, mas não tão disposto às dobras que os caprichos desta fase da existência possa proporcionar. Onde resido, o que como, com quem durmo, estas informações que são relevantes a qualquer primeiro contato social também dispensarei, deixando ao leitor (se alguém se propuser) a liberdade que só a imaginação atual pode conceder. Prefiro mesmo que esta relação se restrinja a isto: de minha parte, prometo ser o mais sincero e racional que puder, e isto não é um personagem de Poe, mas um simples organismo dominado pelo topo neural que decidiu compartilhar algumas impressões; e da parte de quem lê, a passividade reflexiva e silenciosa, quiçá um questionamento, uma réplica furtiva, dignas de quem tem sensibilidade e educação para ouvir, sem interromper em momentos inadequados.
O que proponho não me parece ser nada novo; eu diria mesmo que é tão clichê quanto o que se apresenta por aí em crônicas e bate-papos informais. Estas análises não se encontram em quem escreve; elas já estão aí, à vista de qualquer um. O que difere aquele que lê, o simples receptáculo da opinião alheia, às vezes dotado de algum senso crítico e, mais raro ainda, versado o suficiente para produzir algum contra-argumento, e quem produz o informativo, o que se vai ler, é a agudeza de espírito e a predisposição genética ao absurdo. Isto não se adquire; com isto se nasce! E digo mais: se faz necessária esta distinção, esta divisão de classes, mantendo-se sempre a distância segura entre ambos. Quem lê está por aí, a degustar das frivolidades da existência, dos prazeres e dos hormônios. Não estão muito preocupados em formular conceitos, chavões, máximas, axiomas, postulados. Quem escreve, este sim, sente toda a angústia do pensamento, da dúvida, dos sentimentos controversos e penosos; é o que não tem esta vida comum, que se dispõe a observar, pacientemente, a atmosfera humana em todos os ângulos, sendo atingido por suas vaidades, abominações, idiotices e raros momentos de beleza. Não duvide: isto é demasiado cansativo, e uma postura assim, masoquista, só pode vir do berço, de uma disfunção emocional, ou mesmo de uma normalidade exagerada.Toda a cultura humana, com o seu peso titânico, está fixada neste pedestal frágil, facilmente extinguível. Há os que leem e retêm o já mastigado conteúdo em suas gargantas, prontos para vomitar parcelas daquilo que a memória puder guardar em ocasiões que achem convenientes, e há os que escrevem , os que formulam os baluartes daquilo que consideramos certo ou errado. Estamos fritos! Se toda a nossa bagagem cultural está vinculada ás impressões alheias, é possível começar a entender o porque deste planeta não mais nos suportar, regorjitando-nos constantemente em catástrofes metereológicas e intempéries sinistras. Terei muito tempo para divagar sobre tais alumbramentos.
Sinto-me nos dois grupos citados acima. Existe também este reduzido e esmagado rol, de pessoas que tanto se convencem de que não é possível viver razoavelmente enxergando as realidades ao redor, quanto de outros que têm nos prazeres dos sentidos a grande fuga, o grande mote da saída estratégica. Neste jogo, prefiro ser aquele que escreve. Não nego minha imparcialidade, nem o meu distanciamento voluntário, e, ademais, não gostaria de encontrar quem lê estas linhas em algum café que frequento, ou em algum cinema isolado, atrapalhando este meu trabalho etológico com impertinências que podem facilmente ser respondidas aqui mesmo,neste ambiente virtual.
No mais, me vejo cansado deste primeiro contato. Voltarei, já que me propus a esta terefa, que espero não seja vã. Que o humor varie bastante, que os olhos continuem abertos e que nada se repita, ao ponto do leitor conseguir notar tal barbaridade, acusando-me de enfadonho.
Ao vencedor, as batatas!

8 de julho de 2010

Uma homenagem a Zpilman

Ainda estou vivo. Quanto tempo já se passou desde que esta inércia, esta ociosidade bélica se apoderou do mundo? Não tenho dúvidas hoje de que a guerra é odiosa, (somos realmente animais raivosos!), isso pela sua imensa capacidade de obliterar, de tornar o homem imperceptível, acuado,de ignorar vidas, sentimentos. De onde me encontro agora posso ouvir os tiros, os canhões a despejar suas cargas numa terra desabitada, que já não respira, e esta insistência, esta tola insistência em devastar é cansativa,insana. Meu corpo agora está habituado à inanição, à falta de higiene, às úlceras que certamente possuo, aos calos nos pés, aos dedos insensíveis. Meus dedos. Minhas mãos. Elas sempre falaram tanto...
Tínhamos uma existência agradável. Fica difícil lembrar com este frio, mais difícil é esquecer. Varsóvia era alegre, seus cafés e restaurantes, toda aquela aglomeração social; sim, éramos felizes. A rádio não ficava muito distante da nossa casa. Meu pai... meus irmãos... minha mãe... Será que se encontram em um bom lugar agora? Eles estavam ali, sempre, e quando temos a quem amamos por perto, diuturnamente, todo o sentimento que nutrimos por eles é demonstrado apenas em pequenas doses, acanhadamente; parece mesmo que nada pode abalar tal condição, aquela vida nunca poderia ser suprimida de forma abrupta, nunca nos deixaríamos,mas os nazistas me provaram o contrário,e esta estranha forma de agir eu só percebo agora, quando a morte os levou consigo.
Meu nome já era conhecido entre os músicos profissionais, e o programa ao qual eu participava, modestamente, executando Chopin, era bastante apreciado. Foi ali, naquele lugar que tanto adorava, que pela primeira vez tive contato com esta guerra hedionda. Todos fugindo, salvando suas vidas, tentando buscar um abrigo em meio aos gritos de desespero; eu não queria ir embora. Aquela era a nossa cidade, nosso lar, por que deixaríamos tudo? As explosões se intensificavam, e com elas a humilhação, a angústia; os corpos estraçalhados pelas ruas, tão de repente interrompidos em seu movimento de vida, atestavam que estávamos à beira do colapso, do imprevisível, do inimaginável.

Tudo foi muito rápido. Quando vimos, eles já estavam em todas as esquinas, todas as vielas, espancando, xingando, ditando suas ordens em uma língua que a maioria não conhecia, num esforço inútil de comunicação. Eles sempre se faziam entender. Suas pistolas Luger P08 falavam a língua da morte, da estupidez, toda vez que eram apontadas para alguém. Vi muitos sucumbirem por não entenderem o alemão, sempre com o mesmo semblante incompreensivo; os olhos perguntando, sem exigir uma resposta, o que eles fizeram, o que significava tudo aquilo. Também vi crianças na mesma situação. Nisto que estamos vivendo, não há distinção, todos estão passíveis do horror, e as crianças muito mais do que os adultos estão sujeitas a isso. Em apenas um instante, uma munição fabricada por pessoas que elas nunca viram acabava com suas dores, com os seus medos. Talvez, em algum lugar, algum dia, todos estes pequenos, arrancados da vida pela Schutzstaffel ou qualquer outra facção fascista, possam agradecer tais préstimos libertadores.

Neste sótão, uma pequena janela é a única coisa que me conecta ao mundo. Lá fora, eles acham que não mais existo. Os alemães acham que todo judeu não deveria existir, e mesmo os consideram não-existentes, fantasmas; acho que é por isso que matam-nos tão facilmente. E nisto, nesta fixação da morte, não há qualquer condicionamento. Naquela hora meu pensamento dizia que tudo é vão, que nada une os seres humanos, e toda a idéia, toda a forma cosmopolita de aproximação entre os homens, a saber, a arte , a musica, os conceitos morais, o amor, nada disso é aplicável quando a firme determinação de se exterminar, de se ultrapassar o outro, é a mentalidade válida da ocasião. E o que move geralmente este pensamento fixo? Tolices, quase sempre. Eugenia, a pretensa superioridade de certos tipos religiosos, de certos dogmas impostos, de certos tons de pele, estes que se desfazem por igual, tanto para germânicos quanto para judeus, nas frias covas rasas em que são enfiados, quando se morre. Pela primeira vez vi que toda a cultura que produzimos é inócua, frágil,e que a única coisa em que se deveria apegar-se era a esperança de que nada dura para sempre, nenhuma dor, nenhum ódio, nenhum amor, nada subsiste.

Quando estava verificando o ambiente em que estava, depois de dias sem sair daquele cubículo escuro, percebi que estava sendo observado. Não tinha muito este tino, esta sensibilidade para perceber que olhos estranhos estavam perscrutando meus passos, meus movimentos; nos grande salões onde costumava tocar antes da guerra isso era bastante comum, mas não havia esta sensação de ser abatido a qualquer momento pelo descuido de não se notar as presenças, como um rato diante de um grande gato escondido. Aquele oficial da Wehrmacht tinha me apanhado facilmente; eu estava exausto, preso ao medo e assim sendo mentalmente atento, mas psicologicamente desprovido, fraco, e quando o encontro ocorreu, pensei em ser mais um nas mãos dos carrascos, e pude me conformar. Dois homens, dois seres de uma mesma espécie, divididos pelos trajes, pelos sotaques, pelas idéias. Ele perguntou-me a profissão que desempenhava, e logo disse que era pianista. Aquele olhar incrédulo, por alguns segundos, era a minha sentença de morte certa; depois suas feições mudaram, e ele levou-me até um daqueles instrumentos de trabalho destes músicos. Há quanto tempo não havia tocado? O tempo era a coisa em que eu menos pensava. Todo o tempo do mundo, nenhum tempo do mundo, nada era importante. O piano estava sujo, também vítima dos atos violentos do seu criador primata, mas ainda afinado. Sentei-me e tudo voltou ao passado; não estava mais vestido com aqueles andrajos, não ouvia mais as metralhas russas se aproximando, nenhum disparo de canhão nazista, revidando aos ataques aliados, podiam mais me ensurdecer. Até mesmo a presença, que até agora era mórbida e calcinante, tornou-se obstruída, imperceptível. Não pensei muito, iniciei a Balada n. 1 em Sol Menor – Opus 23. No momento não vi razão alguma para tocar tal música, mas hoje entendo o por quê. Primeiro, Chopin era polonês. Aquele regime estrangeiro vinha esmagando tudo o que consideravam degenerado, abjeto, e Chopin não era bem quisto. O oficial não fez qualquer réplica ao inicio da execução, e então prossegui. A força, os movimentos rápidos, a agilidade de minhas mãos ainda estavam ali, mesmo com o frio intenso; a arte não havia abandonado o meu corpo faminto, ela estava acima de minhas forças, entranhada em algum lugar do meu cérebro, também escondida dos fascistas terríveis.

Esta balada, com suas nuances paradoxais – suavidade e violência, notas menores em predominância e vigor nas notas maiores, temática aguerrida – era o retrato do que éramos naquele instante. Não acredito que aquele oficial já não estivesse farto de tanta falta de sentido, de tantas vidas desperdiçadas, de tanto ódio gratuito, e, junto a um judeu derrotado e entregue ao niilismo da guerra, tivesse a oportunidade de se irmanar, de ser uma só audição, um só sentimento reflexivo diante do instrumento que não parava de rugir, ferozmente, nos dizendo que a beleza ainda existia, que o entendimento era possível, e que mesmo se todos estivéssemos mortos, tudo estaria ali, pronto a recomeçar com as novas gerações, que certamente viriam. Num momento de realidade, percebi a atenção que me era dispensada por aquele jovem oficial alemão, compenetrado, com a sisudez típica dos homens nórdicos. A musica chegara ao fim, e o silêncio que antecedia sempre uma atitude formou-se. Voltei a ouvir o fogo dos canhões, as metralhadoras a zumbir, os gritos, a dor, o desespero de homens que acreditaram que seriam deuses, maiores do que a História e as circunstancias e lições que ela sempre demonstrou, e que agora se viam em igual condição daqueles que eles ajudaram a massacrar. O jovem em minha frente pediu que eu retornasse ao esconderijo e aguardasse alguns dias; voltaria com algo para comer.

Esperar era um exercício fácil naquele tempo para mim. Meu organismo já havia se adequado ás intempéries da escassez, e quando o oficial, já com uma feição mais preocupada, deixou pão, geléia e doces em quantidade muito boa em minhas mãos, dizendo que não viria mais, pois os russos estavam às portas de Varsóvia e decididos a exterminar os alemães a qualquer custo, minha fome era basicamente controlável. Devorei aquilo em poucos dias. Algo diferente estava acontecendo... vozes, não mais em gritaria e confusão, mas conversando pacificamente, vinham do lado de fora do prédio, então decidi verificar. Civis estavam saindo de seus refúgios ... os russos haviam expulsado os alemães. Outros sotaques, estes menos carregados do que os germânicos, dominavam a paisagem; fui confundido com um alemão, mas logo o erro foi reparado. Era imensa a destruição, total a falta de víveres, mas o sentimento era de puro relaxamento. Tudo aquilo poderia ser reconstruído, da mesma forma os sentimentos bons poderiam retornar, mas não sem manchas; estas ficariam para sempre estampadas nas mentes que viram, ouviram e vivenciaram aquele horror. Agora os acordes poderiam sair de seus esconderijos mentais; flutuarem livres, e serem agora, depois de tudo, minha única família, minha única forma de superar o absurdo que vivi, e prosseguirem revelando ao mundo que sempre há a hora do recomeço.

Que ninguém esqueça os horrores que passamos.



Wladyslaw Zpilman - pianista polaco

1911-2000

28 de junho de 2010

Uma Revolta Humana e a Alma de Um Cachorro

Às vezes não consigo entender minha própria estrutura. Sentado neste banco de praça, uma praça qualquer, de uma cidade qualquer, num mundo qualquer, este ,só meu. O exercício diário de atingir a felicidade, o prazer, contaminou grande parte da Humanidade; em meu sangue corre mesmo esta imunidade a esta infecção que me parece torpe, esdrúxula, sem sentido. Como posso ser feliz se nem ao menos consigo aliviar a dor deste cachorro que me pede o resto de pão que comi apenas por conveniência? Eu sei que estou num círculo vicioso, encarando os fatos com aquele pessimismo peculiar aos ditos desagráveis, bobos. Justamente este pessimismo tem me feito um grande bem, me feito enxergar que é inútil a luta, é cansativo o ciclo, é vã a peleja.
Tento escrever, não consigo, tudo já foi dito; tentei várias vezes ceder o melhor de mim, com intensidade, criatividade, doses cavalares de vislumbre e alegria a ela, que aos meus olhos era tão bonita, tão esperta, mas que se mostrou, com o tempo necessário para um piscar de olhos, ser tão comum, tão babaca. Que bobeira! A culpa não foi dela. Egoísmo é a palavra-chave, e comportamentos como os meus, sinceros, aliados à lembrança que teima em não olvidar, este combustível maldito que move a grande besteira do persistir, que não se mete em algum canto no cérebro onde as coisas malquistas devem ser postas, são desprezíveis, na maioria dos casos. Queria mesmo ser cruel. É assim que veem as coisas. Ninguém se importa com o que você pensa, mesmo se for uma abordagem inteligente e sagaz; preferem mesmo o razoável, o piedoso, o límpido aroma da palavra que se quer ouvir. Gosto de ouvir coisas legais, mas perceber o cheiro azedo da gentileza, forçada, hipócrita e escrota, é foda. Disfarça-se tudo nos movimentos do agir, mas não as pupilas em olhos mentirosos. Fui taxado de introspectivo, calado, mesmo estranho, várias vezes; por que tanto incômodo na capacidade de vasculhar o interior de um corpo em dúvida, não conformado com o que se vê, com o que se ouve? Eu não estou alheio às idiotices, às fanfarrices dos outros apenas porque não abro a boca; abri-la para quê? Não ser entendido e receber todo o tipo de digressão visual, como se estivesse sujo de merda? Tempos difíceis, como sempre.
Há cachorros mais interessantes do que primatinhas que acham ser os donos da razão e do sentimento dos outros. Estes bichos não temem sentir, percebeu? Não divagam sobre possíveis pedradas, chutes, água quente ou mesmo a morte por serem impertinentes, eles simplesmente se aproximam, esperam, e sentem. Para eles todos são criaturas amáveis em potencial, e, portanto, passíveis dos mais verdadeiros momentos de alegria. Abanam o rabo, quando têm algum, demonstrando que estão abertos, suaves, prontos para seu sim ou seu não; pouco importa. Não param de tentar. Nisto eles são bem otários. Quando não se quer, é hora de desistir e sair o quanto antes, e mesmo assim ainda há maldade, ainda há chutes, pedradas, água quente e morte, apenas por maldade. Com este aqui não vou deixá-lo esperando; uma partícula da Natureza quer flertar comigo, ser meu amigo, me ouvir... vamos, eu levo você para casa...

25 de junho de 2010

Um conto para crianças infelizes

Se aquilo poderia ser chamado de lar, eu tinha um. Rua lamacenta, num bairro ainda mais sujo, num agreste destes. Não sei a metragem do nosso espaço privado; era pequeno, fato. Grande mesmo era a miséria, a fome, as caras tristes e mesmo despreocupadas dos adultos. Éramos, as crianças, em oito. A primogenitura coube a mim, e acho mesmo que ser o primeiro é bem triste, porque sempre as impressões, as responsabilidades psicológicas com os demais, as surras, as privações, tudo também acompanha este "privilégio" patriarcal. Acho mesmo que a fome e o frio eram iguais entre todos, não havia divisão ou posição social dentro da casa que escapasse a um telhado cheio de furos, numa chuva de inverno violenta. Se necessito traçar um perfil familiar, começemos.
Meu pai (para não fugir daquela hierarquia dos nomes, sempre o homem em primeiro plano, do paternalismo que já citei) era magro, barbudo, vagabundo e viciado. Veja, tudo está intrínseco, tudo se encaixa. Magro, da fome que passou e ainda passava; barbudo, porque não tinha interesse em aparentar-se com aquilo que não era, ou seja, gente; viciado, pois para isso sempre havia meios de subsistir, de sempre ter mais cachaça, droga, e com isso mais tempo disponível em outro plano que não fosse o da realidade; e vagabundo, porque, segundo ele mesmo dizia, não havia estudado, e o mundo andava difícil para quem só sabia ler e escrever. Neste ponto ele estava melhor do que eu. Nem isso me foi dada a oportunidade, na época, de usufruir. Ele era tudo isso que relatei, e muito mais. Era triste. Este sentimento é tão comum em ambientes como este, que ser alegre nem se cogita, nem se sabe bem o que significa tal palavra; aquele que rir, seja por qual motivo for,leva tapa; é falta de respeito com a situação, com o castigo que foi imposto pelo moço do quadro. Sim, o moço do quadro. Cabelos escovados, a pele bem branca, olhos de um azul impossível de reproduzir, um olhar ainda mais enigmático; parecia que ele tinha pena, e não raiva, da gente. Meu pai tinha o maior orgulho de ter aquele moço consigo.
Minha mãe era bem moça, mas não era isso que dizia seu corpo. Peitos horríveis, mordiscados pelo meu irmão mais novo, feridos e dormentes. Eles estavam sempre à mostra, tentando ainda reagir, exercer sua função sacerdotal de dar o que comer a quem pede, sem muito modo, já que os homens, nas portas aonde ela se abaixava para pedir auxílio, não estavam muito dispostos a fazer esta tarefa a um estranho. Ela também citava o moço do quadro, dizendo que a moldura estava gasta; tinha sido de sua avó, que passou para a sua mãe, no sítio, e agora estava com ela. A provisão era sua responsabiidade, tinha que trazer alguma coisa para casa, para alimentar a prole, enquanto o macho dominante estava em alguma esquina dessas, tomando uma caninha. Ela era ainda mais triste do que meu pai, mas tinha um olhar parecido com o do moço do quadro. Esse moço já deve ter visto muita coisa.
Eu estava ali, e nem sabia muito bem o por quê. Sabe quando você se pega sem um sentido real, nada que possa sustentar a ideia de que você deveria estar onde está? Pronto, era isso. Tinha um cantinho só meu na casa. Havia três cômodos. Uma sala, onde todo mundo dormia, no chão, sem móveis. Um beco, com uma saída que, segundo minha mãe, era a cozinha, com uma mesa de madeira bem velha,desativada por falta de uso prático, e um banheiro, onde só um por vez poderia ficar, e não por muito tempo, com o risco de desfalecer. Mesmo sem comida em casa, o banheiro era bem utilizado. Meu canto era embaixo desta mesa. Meu rato, um gabiruzinho novo, morreu ali, e achei aquilo tão íntimo, que acabei adotando o lugar como meu. Ele procurou um canto onde nem eu nem ninguém pudesse ver sua morte, e talvez o que eu pretendia fazer era justamente o mesmo. Mas morrer é fracassar. Numa situação daquelas, tudo deveria persistir, com a dignidade que desse. Meus outros irmãos eu não vou citar nomes nem posturas. Um infeliz só basta.
Naquele dia tudo corria normalmente, ou seja, cada segundo era uma dor, uma pulga arrancada da roupa, uma tentativa escondida de riso e imaginação com um tijolinho quebrado, que de repente se transformava em um carrinho à fricção visto na TV, na rua, quando todos os vizinhos já tinham sido amolados em busca de alimento. O moço do quadro estava ali, nunca se mexia, nunca piscava, nunca ria; melhor moço não poderia ter seu retrato ali. Era passivo, conformado, inerte, mesmo com toda a súplica de minha mãe, dia e noite, pedindo a ele que o dia não mais surgisse, pelo menos para o caçula, que tinha destruído seus seios e continuava faminto, choroso e barulhento. Nunca pedia nada para ela, minha mãe. Pai estava na frente de casa, numa cadeira velha de balanço, cigarro na boca e meio inebriado. Os meus irmãos estavam na sala, se coçando, (as sarnas não deixavam a gente em paz) quando cheguei com mãe da feira. Naquele dia a cozinha ia ser reaberta ao público, depois de muito tempo. Tomates, que disseram que estavam podres, eram uma iguaria apreciada pelos manos e por mim. Um monte de vagem, onde sobravam ali vez por outra alguns feijões verdes, estava num grande saco, e eu tinha a tarefa de procurar estes remanescentes; uns 10 kg de vagem não davam mais do que 50 feijões. Tudo foi embora em questão de segundos, mas o caçula vomitou o que comeu. Era duro demais pra ele, não estava querendo entrar no rol dos que "comem até pedra".A feira estava cheia naquele dia, muita gente se adiantando nas compras, porque era tempo de copa do mundo. Nem sabia o que era isso no momento . Disseram que era futebol.Tá certo que vi alguns meninos jogando aquela bola de um lado pro outro numa rua em que fui pedir, mas não achava graça naquilo; tinha fome. Não sabia que o mundo perdia seu tempo com aquela bobagem também.
Vou voltar para aquele dia. Meu irmão chorava mais do que o costume. De onde vinha tanta força para gritar, para reclamar da falta, da inanição que tinha? Sobreviver é achar forças onde elas não existem. O único que tinha alguma paz naquela tarde era o moço do quadro. O resto, todo, estava ou ficando surdo com os gritos, ou perdendo a consciência pela escassez do estômago. Mãe não conseguiu mais suportar aquilo e deu o menino para que eu segurasse, e me disse que ia nas redondezas achar alguma alma caridosa que a acudisse com um pouco de leite, mesmo que fosse estragado. Olhou para o moço do quadro, mas sem aquele olhar clemente de antes, e se foi. Os outros seis eu havia juntado na sala, e sentei no chão da cozinha, junto com o pequeno, que tratei logo de soltar, numa margem segura para ele. Sentou-se e continuou a chorar, efusivamente. A porta principal da casa, que era, como todas ali por perto, de madeira e dividida ao meio, foi arrombada, violentamente. A distância desta para onde eu estava era mínima, mas pai passou algum tempo procurando o epicentro de seu tormento, de sua impaciência, esta mesma que ele produziu num instante de pernas abertas à força e de animalidade. Ele, ele mesmo, era o meu tormento.
A gritaria na sala era evidente. Tudo foi revirado e ele não conseguiu achar o caçula. Estava drogado demais. Trouxe para casa uma nova forma de suicídio coletivo. Finalmente seguiu um instante de sanidade e percebeu que o choro vinha debaixo da mesa; a destruiu com um golpe (ela estava podre), e o apanhou pelos pés. Eu fiquei no meu canto, mas não sem minha recompensa por tê-lo feito de imbecil. Um chute na cara dói, e os pés dos pais são ainda mais contundentes. Vi meus irmãos, que estavam na sala, saírem apressados. Também vi aquele homem destruído pelas fugas que escolheu na vida segurar um pedaço grosso da mesa que acabara de destroçar e seguir para o colchão, onde estava o caçula, que continuava chorando como um louco. Não vi o espancamento; não vi o olhar de pai, suas feições, seus pensamentos quando estava fazendo com que o seu filho mais novo se calasse de uma vez por todas. Sempre temos uma oportunidade de aliviarmos nossas frustrações, fracassos e ódios em algo que não reage, ou não quer reagir, que nos ama, ou que apenas está acuado, não tem culpa ou mesmo não tem sorte de estar ali. Ele foi bastante eficiente em não perder a chance.Não vi nem ouvi mais nada. Estava encolhido, no cantinho onde meu gabiru resolveu deixar este mundo, e que agora me fazia uma maldita inveja. Aquele corpo cambaleante saiu correndo pelo beco da casa, madeira na mão direita, a sua mais forte, soltou-a e correu ainda mais. Meus irmãos vieram em seguida; primeiro olharam meu corpo paralisado, depois foram para a sala, e viram outro corpo, mutilado, cabeça estourada, sem ruído nenhum. Eu no começo achei bom o silêncio, mas quando você se acostuma com algo, presencial, sonoro, sentimental, o que quer que seja, é difícil se desvencilhar. Levantei e fui para a sala. A pior coincidência acontece justamente nestes momentos; minha mãe tinha conseguido uma lata de leite, intacta. O homem que comprou para ela se compadeceu de sua situação, num mercadinho a alguns quilômetros de nossa casa,e quando ela agradeçeu ao moço do quadro pela provisão, falando com vergonha, o homem disse que ela não deveria perder tempo com isso; se quisesse, poderia agradecer somente a ele, porque foi o único que ouviu o seu clamor e a ajudou. Ela ficou meio sem graça, mas assentiu . A lata caiu no chão quando ela viu o que eu não pude olhar acontecer. Não quis saber de mais nada, a não ser tirar o moço do quadro da parede e com ele discutir, gritar, perguntando o por quê, qual o motivo. Eu lembro bem que ela pediu aquilo, várias vezes. O moço do quadro não é tão surdo, nem tão displicente assim, afinal. Veio a Lei, e a casa foi fechada. O caçula ficou famoso. Meu pai morreu na cadeia. Minha mãe matou-se, enforcada. Meus irmãos se danaram, e eu continuo vivo, numa destas tramas do Destino, falando para crianças infelizes.

Nota do autor:
Agradeço aos noticiários policiais diários pela inspiração.


21 de junho de 2010

Um Escritor e o Desescrever - Parte I

Aquela cidade estava encravada numa pequena ilha, não muito distante do continente. Minha velha genitora tinha um sonho: conhecer uma pequena posição geográfica como esta. As ilhas sempre trazem um distanciamento, uma revolta em favor da solidão, e não parece ser muito distante os conceitos de Darwin sobre a proliferação de espécies exóticas, diferentes das demais, adaptadas aos ambientes mais separados das grandes convenções biológicas. Era possível perceber isto ali; tanto a natureza quanto os homens eram de uma singularidade ímpar, não detectável em lugar algum.
Tinha ido nesta viagem à convite de um professor emérito da universidade de... da qual fiz parte do corpo docente.Eu estava aposentado, e ele havia visto minha fotografia num jornal da ilhota, de pequena circulação. A internet também estava repleta de citações dirigidas a mim, dito um grande escritor, aclamado e sem dúvida bastante conhecido em toda a parte. Ele havia me lançado um desafio, pois já vivia ali há alguns anos, e fez um certo segredo, dizendo que seria bem mais conviniente se me dirigisse até lá, para tomarmos um bom café (este continental) e discutirmos o teor desta tal empreitada. Assim sendo, segui, intrépido.
- Que bom que veio, George. Está bem mais magro... e continua um fumante inveterado.
- É gregor, algumas coisas nunca mudam, não?
- Sim, nunca mudam. Como foi a viagem até o cais? E a baldeação, ainda conturbada?
- Pareceu-me bastante agradável. Não vi nenhuma balbúrdia.
- Esta ilha era uma novidade quando vim para cá. Naquele tempo a travessia era bastante tempestuosa, mas parece que nisto também houve modificações. Vamos, meu carro não está longe daqui.
Era inevitável não perceber a organização daquele lugar. As estradas, todas excelentes, eram bem sinalizadas; as ruas, todas, em impecável harmonia, e as casas não diferiam muito em conforto e boa aparência. Não vi transeuntes. É verdade que chovia um pouco, e o frio era intermitente, mas nem estávamos num dia de feriado ou final de semana, momentos comuns lá, nas grandes cidades, onde isso acontecia, frequentemente. Gregor explicou esta minha observação dizendo que ali era normal as pessoas não saírem com frequência, preferiam ficar em casa assando petiscos em suas lareiras e se distraindo com as programações da TV local.
- Aqui há uma emissora de TV?
- Sim, há. Fiquei surpreso também. Não consegue-se captar qualquer sinal na capital, e de lá nada vem. Estranho, não?
- Parece. E o jornal, poderia me mostrar algum exemplar?
- Tenho a edição de hoje em casa, logo logo vai poder vê-lo. Aliás, isto tem a ver com o propósito de sua vinda aqui. Algumas surpresas o aguardam, George.
Paramos em um pequeno mercado, bem ao lado da rodovia, que estava bastante segura das fortes ondas que vinham do oceano por um sistema de diques fabuloso. Gregor pretendia comprar alguns itens que faltavam para o jantar, que se aproximava, e algumas bebidas para o encontro. Preferi ficar no carro, observando aquilo que agora era uma pequena tempestade invernal. Sempre fui bastante ávido com aquilo que não conhecia, e resolvi rapidamente adequar os sentidos para tudo o que me era mostrado naquela paisagem. Tudo estava normal, mas de repente um fato me deixou confuso, realmente perturbado por alguns segundos. Gregor estava com algumas sacolas nas mãos, e pediu minha ajuda para colocar tudo aquilo na mala, não tinha trazido qualquer agasalho ou guarda-chuva para aquela ocasião.
- A tempestade intensificou-se. Mas tudo aqui é bastante tranquilo, não se preocupe. Minha casa é bem aconchegante nestes tempos de frio, vai gostar.
- Gregor, não pude deter minha curiosidade num aspecto que pecebi naquele mercado...
- É melhor nos apressarmos, se quisermos aproveitar a noite que se segue, não?
- Sim, vamos, mas...
- Calma, meu caro. Já sei o que incomoda você. Isso faz parte do plano. Se conseguir conter as impressões em seu cérebro, assim que nos acomodarmos tudo será dito, ok?
- Tudo bem.
Seguimos em direção à casa de Gregor. segui-se na estrada, pelo lado direito, uma pequena floresta de pinheiros agradável e buliçosa, por conta dos ventos que vinham do mar. Tudo muito bem delineado, cada espaço entre as árvores era, ao que me veio á mente, milimetricamente definido, padronizado. De soslaio percebi que Gregor estava atento ao que eu estava percebendo, e um ensaio de sorriso surgiu. Aquilo tudo estava começando a me deixar nervoso.
- Se quiser cigarros, aí tem um bom maço. Havia deixado o jantar em "stand by " antes de seguir para o cais. Não demora muito e logo estaremos em local seguro. - disse Gregor, de olho na estrada.
- Preciso realmente tomar um bom banho.
Depois de um pequeno monte, bem arborizado, uma pequena estrada entre a floresta nos levou até a casa de Gregor. Era em estilo vitoriano, branca, rodeada pelos pinheiros molhados, com uma boa frente descampada, repleta de folhas amareladas do recém terminado outono, que ali era bastante evidente pelo visto. Quatro colunas seguravam aquilo que era um terraço bastante agradável, gradeado á altura de uns 1,10cm; uma cadeira de balanço e algumas cadeiras em cana-da-índia. Gregor estacionou a sua BMW SW bem em frente ao terraço, correu para a mala e retirou ás pressas os itens que havia comprado, e fomos para dentro.
- Seja bem-vindo, George. Aqui pode se sentir em segurança.
- Por que eu deveria e sentir seguro? Você já vem insinuando isto desde que saímos do mercado, quando eu ia inquiri-lo sobre o que vi...
- O que prefere, spaguetti a bolongnesa ou ravioli em molho branco?
- Bom, o que preferir, mas...
- Se não em engano, ouvi você falar em banho no carro. Bem, posso ajudá-lo com isso oferecendo uma boa suíte, no final do corredor, subindo as escadas. Tudo está lá, pronto para lhe ser útil. Se precisar de algua coisa a mais, grite.
Subi as escadas, acompanhado por belos quadros bem dispostos na parede.
- São artistas locais, acredita?
- Fantástico, Gregor!
- Por isso estão aí, hehehehe... vamos, apresse-se, vou também cuidar do meu asseio. Até breve!
Havia mais quadros, obras belíssimas, por toda a casa. O pavimento superior estava repleto de pinturas de extremo bom gosto, que em nada deviam aos italianos, flamengos ou ingleses que já tinha visto antes.Esculturas magistrais também povoavam as estantes, em médias colunas coríntias realmente impressionantes. Na suíte realmente não faltava nada. Tudo bem organizado e em ótimo estado, convidativo para um banho demorado e quente.
Quarenta minutos foram necessários para que o cheiro da maresia fosse pelo ralo, e eu realmente me sentisse civilizado e limpo outra vez. Gregor já estava na cozinha, vinho aberto e duas taças, uma quase no fim.
- Com está se sentindo, George? Espero que tudo tenha estado a seu gosto.
- Sua receptividade é incrível. Realmente não me enganei em vir.
- Que bom que tenha gostado. Sente-se, tome um pouco de vinho. A temperatura ambiente está agradável para você?
- Sim, nada muito diferente do frio do continente.
- É. Eu sempre tento manter a temperatura a mais parecida com o continente. Faz algum tempo que não o visito. As tarefas cotidianas têm castrado meu tempo.
- E como andam as coisas por aqui? Soube que você instalou-se numa universidade recém criada...
- Sim. Eles precisavam de um professor de semiótica, e tive a oportunidade de ser contratado. Você sabe, George, estamos aposentados, mas não podemos nos esquivar de desafios. Trinta e cinco anos de sala de aula não foram o suficiente, e aqui, especificamente aqui, tudo isso é potencializado, pode acreditar.
- Por que?
- Decidi pelo spaguetti. O que acha?
- Perfeito! este vinho cairá bem com a massa.
- Ótimo. Estamos indo bem.
- Receio que há em você uma esquiva em relação aos meus questionamentos sobre este lugar, e sobre o que vi. Acredito que o mistério traga uma sensação saborosa a você, mas a mim é massacrante.
- Está ficando velho e enferrujado, George. Você sempre foi o mais arguto entre nós.
- Esta reflexão sobre mim eu não conhecia, hehehe.
- Nenhum outro poderia estar aqui, George. Esta ilha guarda algo que você certamente desconhece. Acredite, não está aqui por acaso.

continua...


30 de maio de 2010

Minha Conduta

Minha prática é saudável,
Só uso copos bem limpos
Vidro temperado, resistente à quedas, sem mancha alguma;
Os bares que freqüento não são insalubres
Seus certificados sanitários estão nas paredes
À vista, para qualquer um,
O liquido que costumo ingerir
É antigo e europeu
Às vezes causa-me náuseas,
Todas as vezes provoca-me alívio;
A mulher que me acompanha
É bela aos meus olhos
Muitos a acham estranha,
Mas na cama ela é a melhor!
Sim, no lugar que me interessa...
E o amor?
Deixei em casa.

28 de maio de 2010

Eis-me

Hoje sou a espera

O aguardar do tempo, da vontade

Agora mesmo digiro o tédio

Das companhias, das impressões,

Sento e acendo mais um cigarro,

O melhor mesmo é introverter-se

E cuidar da manutenção de si,

Nada das conveniências da procura

Apenas o eu, o bastante

O tolerável...