10 de janeiro de 2010

Tratado sobre a Insolência - Parte II

E assim pude enfim vislumbrar o mundo. Estava chovendo quando Eduard colocou-me no carro e pedi, angustiado, que fóssemos embora o mais rápido possível. Não olhei para trás. Não senti qualquer ardor de um início de saudade da casa paterna; para mim aquele lugar era maldito; ali eu fui gerado, na imundície de um sistema de hipocrisia e farsa, onde os homens são impolutos e as mulheres submissas, onde a família é o bem maior que se pode possuir, e a fome a miséria são disfarçados pela maquiagem torpe de um cargo público inútil. Realmente não olhei para trás, tudo o que eu visualizava naquele momento sutil era o futuro, ele que já estava como uma cortina belíssima a se desvendar, a mostrar sua face. Meus livros, minhas roupas surradas, tudo ficou, não quis mais nenhum resquício daquela vida infeliz.
Eduard estava empolgado com a ideia de me levar à Paris. Disse com uma ênfase contagiante que eu iria gostar do lugar onde morava. Rua do inválido. Hahahahaha! Belíssimo! O que mais poderia me acontecer de tão excitante? Estava infinitamente feliz pelo meu papaizinho ter tido a brilhante ideia, a única que teve em toda a vida, de me renegar, me abandonar a própria sorte num lugar gigantesco como Paris, com um tio pervertido, homossexual e beberrão. Qual favor ele me fez! Estou a caminho do desconhecido, mas vou como um guerreiro ao Vahalla, depois das lutas terrenas, o descanso dos heróis! Não tinha amigos, não tinha namoradas, não tinha nada a me apegar.
Minha locomoção era grave, pois minha paralisia tomava-me por inteiro; mãos, pés, articulações, braços, pernas, tudo corrompido pelo parto mal feito. Mau consigo falar com naturalidade, poucos são os que entendem o que sai de minha boca; torta, mal cheirosa. Meu belo tio adaptou algo como uam cadeira, duas rodas de bicicleta, pés que Deus não permitiu que os tivesse para caminhar pelo mundo, mas que um homem sujo em uma viela escura tratou de conseguir. Para que precisamos de Deus, se os homens são extremamente adaptáveis? Hahahahhaha! Eduard já conseguia entender o que eu balbuciava com dificuldade, e assim conseguámos manter algum diálogo quando a noite não estava boa para um passeio, ou a biblioteca estava fechada.
- E então, o que acha de Paris?
- Um espetáculo! Agora entendo porque os prussianos são tão invejosos e querem tomar a todo custo esta bela cidade! Aqui existe aquela sutileza que não é vista em parte alguma da Alemanha, até as mulheres são mais interessantes... diga-me, Eduard, trazes mulheres para tua toca?
- Raramente. As impressões femioninas são importantes para os efeminados. Na verdade, somos meros imitadores daquilo que a mulher é, e elas devem sempre estar em nosso séquito, senão na cama, no bar.
- E as igrejas? Pretendo ir a alguma missa...
- Hehehehe... o que pretendes fazer num templo cristão, garoto?
- Busco a face de Deus... ele me deve explicações... certamente, como dizem os papas e bispos, eu acharei o fanfarrão em algum lugar na França, a filha da Igreja. Leve-me assim que puderes.
- Tudo bem. Posso levar-te agora, se quiseres.
- Uma bela tarde de inverno... sim, mas preciso lavar-me... tens isso que chamo de corpo a teus cuidados, olhe bem o que farás com ele.
- És meu sobrinho, o que poderia te fazer de mal? Aproveito e me delicio de alguma forma...
- Levas-me á perdição, titio... és um crápula...
- Tuas funções vitais são excelentes, e teu membro ainda mais, e é isso o que se procura por aqui... bons membros rijos... e os dos germânicos são apreciadíssimos!
- Pensei que todo teutônico que aportasse em Paris ou em qualquer outro lugar fosse passivo... hehehehehehe!
- Alguns sim, meu adorado sobrinho, alguns sim. Vês este teu parente, que delira ao menor toque de um militar ou grumete de Hamburgo ou Leipzig... digo a todos que sou francês, pois alguns não comeriam outro germânico, têm lá seus pudores estranhos! Lavo-te com destreza?
- Minha mãe não poderia fazer melhores abluções orais... hehehehe... no demais, és medíocre.
- Sim, medíocre tratando-se das conveniências. Não há nada melhor do que a mediocridade das coisas comuns! Uma vida como a sua não deve ser legada á mediocridade, pois o simples fato de teus pulmões inflarem e teu coração bater, além da tua virilidade espantosa, já poderiam ser sinônimos de força e fé na vida. Tua preocupação em expor-se ao mundo é valorosa, e estou contigo, não temas!
- Obrigado, pobre cavaleiro! Agora vem e enxuga-me, está fazendo um frio dos diabos aqui... como o inferno de Dante...
- Vamos a uma pequena igreja aqui perto, quem sabe não encontres o velho deus por lá.
- Excelente! Tua invenção foi testada? Não cairei na rua?
- Por certo que não. è resistente e tua compleição é franzina. Lavei tua roupa hoje e creio que está a gosto. Vamos.
Saímos a procura desta capela, onde Eduard me levava. Nesta minha primeira incursão aos campos da liberdade, decidi ir de encontro a Deus. O pó, uma pequena parcela do nada, em busca do Criador, do Onipotente, e , principalemente, do Onisciente. Acostumar-se com um corpo doentio é tão difícil quanto esperar por uma resposta dos céus. Mas aí se encontra um exemplo de insolência, pois mesmos sabendo que nada virá do alto, nenhum murmúrio, nenhum recado, mesmo assim o desafio se lança diante dos que creem, dos que perdem o seu tempo em venerar o vácuo, o zero. Uma porta maciça nos separava do átrio da igreja, e entramos, altivos. Os olhos dos espectadores do grande circo, uma vez e mais uma tão afetado e entendiante, com o mesmo palhaço ostentando suas insígnias romanas, os olhos daqueles que ali estavam captaram minha pobre figura e não mais se distraíram. Fui para frente, bem próximo ao altar; cretamente o padreco nunca vira tão horrenda criatura, mas ali, diante da saliva que eu nunca pude controlar, a cair de minha boca, meu tio a enxuga-la, o sacerdote voltou a entoar seus ritos funestos, enquanto os fiés já não se preocupavam com seus pecados, em expia-los, e cometeram o pior dos pecados imagináveis: não dar atenção a Jeová. Tudo foi quebrado, uma vez que ninguém mais notava a cruz e sua dor, viam a dor real, um ser humano factual, e sua insolência em participar da vivência dos sãos... hahahahahahha!


6 de janeiro de 2010

Tratado sobre a Insolência - Parte I

É uma força que me move, alavanca-me quando penso em ser apenas um qualquer. Um corpo saudável e jovem, certamente, auxilia nesta competência, mas mesmo assim sou receptáculo dela. Eis a insolência.
Escolhi uma vida heterodoxa desde minha chegada a este mundo. Minha mãe era bastante devota, e meu pai um austero indivíduo que não admitia falhas familiares. Já tinham um filho, imprestável irmão que hoje nada é, e o senhor daquela casa fétida não queria outra criança a interromper-lhe as meditações em Kant que ele tanto apreciava. Este velho permeou sua vida, o induziu a ser medíocre, pusilânime, o mais imbecil dos homens de bem... hahahaha... ele não queria mais uma criança. No sexto mês de gravidez minha mãe o informou daquele fardo que estava por vir; o grande pai, obviamente, a acusou de ser irresponsável e idiota, por ter aberto as pernas para seus impulsos sexuais animalescos num momento de crise financeira a qual estava atravessando. Um abrir de pernas, eis o que sou! Deste movimento, do qual participam tanto humildes camponeses, funcionários públicos, prostitutas, bichas, padres, pastores, papas, deuses... desta passividade que é ao mesmo tempo o principal movimento da criação, nasci, numa noite de chuva num inverno prussiano qualquer. Estas pernas abriram-se novamente para regurgitar este corpo marcado pela má formação, impedido de ser rotulado como normal, algo válido, digno de apreciação pelos vizinhos, pelos perentes; meu corpo é disforme, realmente aviltante, até para mim, acostumado a inconveniências. Este foi meu primeiro desafio, e cresci com este fardo inicial.
A região em que vivíamos era torpe e cheia de pobreza e miséria. Éramos os mais saudáveis economicamente, e isso atraía a atenção dos corpos em farrapos, destruídos pela avareza dos príncipes e padres locais, que iam à nossa residência frequentemente. Minha mãe, em nome de deus, era solícita e juntava o que sobrava de nossa mesa e abastecia a fé daqueles que achavam que o senhor era provisão aos desamparados. Da pequena janela de meu quarto, onde gostava de passar os dias longe dos olhos de meu pai, sempre a observar minhas truculências físicas, eu via estes vultos, e os achava deploráveis; sempre submissos, aos céus e às beneces terrenas. Deveriam existir, acho, porque sem eles minha mãe, e tantas outras carolas, não poderiam exercer a caridade, a fraternidade tão pregada e tão valorizada; sem eles os vigários de cristo seriam apenas homens sem muito sentido; os poetas seriam apenas escrivães de um sentimento tolo; o amor serviria apenas para justificar os erros que cometemos com o outro; seríamos piores sem os menores.
Exigi de minha mãe que o meu quarto fosse no último andar, num total de três, e que lá fosse feita uma pequena biblioteca, um escrivaninha e o silêncio fosse total. Odeio barulho. As crianças têm comigo uma dívida neste aspecto: elas têm em seus ruídos estridentes um ar asqueroso, vil. Saio com uma certa frequência a alguns bares hoje, e lá existem crianças, não chego perto delas. Na época de minha narrativa, eu as repudiava ainda mais, tanto pelo fato de seus gritos guturais insanos, a sair pela casa em desvairada idiotice, quanto ao fato de não serem comedidas; dizem o que se passa pelo cérebro, sem filtros ou qualquer distinção. Muitas vezes estava em minha solidão disforme e eles vinham, os vizinhos ou outros garotos e garotas amigos do meu irmão, e todos ficavam a me olhar de maneira repugnante, como se ali estivessem diante de um inseto esmagado, uma barata ou um rato. Eu sempre percebi as expressões dos rostos, os coxixos e os risos baixos quando estes se deparavam com minha estrutura raquítica e horrorosa. Os mais velhos tinham o mesmo hábito, a mesma forma de analisar o estranho, o pavoroso, de maneira a quase vomitar a meus pés. Por isso sempre me isolei de todos, por achar que minha aparência era detestável e insignificante. Meu pai tinha vergonha de mim. Meu nome era impronunciável naquela casa.
Finalmente, a liberdade. Não aguentando mais a situação de possuir um inválido em casa, meu querido paizinho pediu ao seu irmão, que morava em Paris, que me levasse quando este voltasse para casa. Paris! Meus livros estavam certos, não existe lugar mais interessante! Este meu tio era uma exceção benéfica em minha família. Homossexual, mas que não tinha a coragem necessária para assumir, nem ao Estado nem á família, mas que sempre fez questão de afirmar a mim tal condição, quando vinha ao meu quarto para dormir, era um daqueles espíritos que não se emporcalhavam com o luteranismo nem mesmo com a alma alemã casta e velhaca dos meus pais. Culto, ateu, amante incondicional da vergonha e do despudoramento, lia para mim os trechos mais apaixonados dos autores que tínhamos em comum, todos perversos, miseráveis com o homem, imorais . Certa noite ele veio à minha cama, deitou-se ao meu lado e disse que nunca havia chupado um sobrinho, ainda mais naquela minha condição trôpega. Perguntou-me se já havia tocado em meu pênis com outra intenção que não fosse mijar; eu disse que havia feito algumas experiências, mas que os meus tremores e sudoreses não permitiam êxito em gozar. Aquilo parece que o estimulou, e sem cerimônia agarrou meu pau, já um tanto ereto com tudo aquilo, e enfiou guela abaixo, num movimento que eu nunca havia sentido antes. Preciso deter-me nesta abordagem, não perderia falar de um dos únicos momentos de prazer que tive na vida.
Eduard, meu tio, estava ali, com meu membro em sua boca, chupando-o com avidez, e cada vez mais sentia que o meu pênis ficava ainda mais duro, receptivo ás carícias, aos trejeitos que ele me proporcionava. a cama rangia bastante, e eu por um momento tive de me desviar daquele sentimento agradabilíssimo para me preocupar com os outros lá embaixo. Mas Eduard tinha lá seus recursos, e ficou de joelhos, como um serviçal, implorando pelo meu pau, e eu fiquei sentado à cama, dando de bom grado o que tanto queria. Pela primeira vez vi a insolência; pela primeira vez vi a quebra de todo paradigma hierárquico-familiar, o vi desaparecer em nome da luxúria. Seria normal um pai seduzir e comer sua adorável filha, com mamilos nascendo, ou uma mãe entupir sua vagina com o pênis vigoroso de seu filho adolescente e potente, mas um tio se sujeitar aos caprichos de um sobrinho aleijado apenas para abocanhar seu membro? Sim, a insolência se apresentava ali, flertando comigo e esperando resposta, esta que eu não demorei em nenhum momento a conceder. Venha, santa insolência, sussurava ao ouvido daquele homem devorador enquanto se satisfazia, e de repente o gozo, a gênese, veio à sua boca furiosa, e ele tomou toda aquela síntese de prazer como um elixir, uma ambrosia. O prazer é o único momento feliz de nossas vidas, não é verdade? Tudo fica em segundo plano: deus, eu, você, a paz, a guerra, tudo fica para depois quando se está gozando, e aquela gozada foi primorosa, porque nunca tinha gozado antes. Depois disto, meu tio sentou-se, ainda limpando a boca com os pingos que restaram, resvalou-se na cadeira, pegou Homero e leu, em silêncio. Fiquei um tanto assombrado, mas percebi logo ali que ser insolente era ser cínico, tratante, fazer coisas que a humanidade acha absurda e intolerável como se estivesse recebendo a hóstia consagrada, ato normal e santo. Deitei e dormi, como todo rapaz pleno, saciado.