23 de outubro de 2009

Ira

Não conheci ainda outro sentimento que não fosse a ira. Estou grudado a este corpo, passível a ele, que me gera, mas que não me quer. Eu escuto o que ela escuta, mas nossas mentes estão separadas; aqui, encolhido em um ventre já exaurido, espero o momento de ser tragado pelo mundo.
Moramos na rua. A do Hospício. Quando não está á procura de loucura, minha mãe fica imóvel, algumas roupas sujas, um prato imundo, uma caneca ainda mais imunda, pedindo a misericórdia de Deus para nós. Quem será este que ela tanto clama e que nunca aparece, e que ela sempre chama, mesmo assim? Nunca ouvi sua voz. As pessoas que passam parecem não ligar muito ; certo dia ouvi alguém chegar , estava lendo alguma coisa para ela e entregou um folhetinho ;minha mãe disse que não sabia ler, e o que ela precisava era de comida, não de Deus. Descobri que Deus era apenas um mote odioso. Não existia deus algum. Nunca ganhou um bom dia de ninguém. Nunca soube o que é ter um bom dia.

O que eu escuto é a voz de um mundo odioso.

Muita gente indo de um lado para o outro, apressados, com seus rostos desgostosos, saindo de casa obrigados para ir a um trabalho repugnante,onde se vendem por uns trocados; minha mãe também se vende; sempre ouço palavras como "faço por 10 real, moço, um boquete, o senhor não vai se arrepender". Às vezes sou sacudido, de um lado para o outro, se alguém aceita a proposta. Muitos falam da "buchudinha suja da rua do Hospício", numa clara alusão à sua profissão e ao nojo, ao que é descartável, e é isso que somos; me pergunto por que ela não me abortou, não me expeliu em alguma latrina, ou num mangue qualquer; preferiu, ao invés disso, manter-me vivo. Certamente achou que esse seria o meu pior castigo, castigo por atrapalhar a sua vida, por ter ganho a corrida por um lugar em seu óvulo, em insistir em crescer e lhe proporcionar sensações de enjoo e desmaio, dificultando sua locomoção pelos becos em busca de machos disponíveis. Sempre ouço seu lamento aos outros que passam, afirmando que eu sou um trapo que ela carrega na barriga. Sou um ludus naturae, uma brincadeira concebida, resultado de um prazer forçado com alguém que ela nunca viu; brigou com a namorada e quis gozar na cara de alguém, na vagina de alguém.
De uns dias para cá tenho ficado quieto. Minha idiota mãe pensa que morri; mas não. Tenho tido medo. Venho já de um ventre rejeitado, de uma mulher rejeitada, meu destino não é outro. Não queria viver como uma sombra, mas não tenho escolhas. Tudo o que preciso ter é ódio, rancor, um combustível que me faça viver lá fora, da mesma forma que me faz sobreviver aqui dentro, mesmo com este cheiro de morte por todo lado. Não ligo se lá fora posso ouvir pessoas se amando, nas praças onde dormimos às vezes, ou crianças sendo esperadas com carinho, quando suas mães vão às compras numa loja de artigos para bebês, onde também costumamos dormir, na calçada. Aqui é onde me sinto mais bestializado. As futuras mamães, todas exuberantes, adquirindo seus berços furta-cor, suas roupinhas dos enxovais, rosas ou azuis; toda uma perspectiva de futuro e alegria lá dentro, todo uma vontade de vomitar, aqui fora. Consigo ouvir,quando elas comentam o absurdo de uma mulher grávida estar naquela condição miserável. "O que será desta criança?", dizem; eu digo: provavelmente serei o pior pesadelo dos seus futuros e amados filhos, talvez a morte deles, o fechamento de um ciclo, impulsionado pela ira que sinto agora destas vadias hipócritas. Não ligo para minha mãe. Sou mesmo um corpo estranho, não enjeitado por conta das várias alterações químicas que me sustentam neste útero isalubre; até esta química eu odeio. Muitos perto de mim falam em suicídio, deve ser algo bom, já que dizem que encerra o sofrimento, a raiva.
Fui chutado. Minha mãe já sente as dores do parto, as contrações aceleradas pela violência de dois homens que ela chamou "os homi". Uma ambulância chegou e nos levou para um local onde eu irei nascer. Ainda estou aqui dentro, não sei se quero sair, a ira me dominou completamente, o ódio de estar neste mundo onde ninguém se respeita, ninguém se gosta ou é verdadeiro, e a vida é temperada pelo sofrimento e pela angústia. Suas dores continuam, lancinantes. Ela grita como uma louca; um tempo antes da agressão ela havia fumado uma "pedra"; ouço apenas o que ela ouve, sentimos coisas diferentes. Seu trabalho de parto se parece com o trabalho das pessoas lá fora, obrigado e imbecil, sem sentido. Não vou sair. Agarrei o cordão umbilical, única coisa que nos une, o que preciso para me separar para sempre desta dor, desta raiva que sinto já desta mulher, desta gente, desta vida que não tive. Consigo ver um pouco de luz; ela brilha muito... um homem dizendo que meu pescoço está enrolado no cordão, não tenho chance... até que enfim, natimorto.