10 de novembro de 2009

Gula

Há pouco comemos um pequeno cachorro que se aproximou de nós, certamente procurando seu dono. Admito: não foi um prato suculento, uma iguaria francesa ou alemã, mas nos caiu bem. As bombas pararam um pouco de cair; como te disse num outro dia, estamos sem rumo, explorando outros locais mais seguros e fugindo de outros grupos maiores. A antropofagia tornou-se algo comum por aqui.

Você havia me perguntado sobre a situação atual de nosso país. Durante cinco anos, vivemos a glória e o horror de uma estabilização econômica e social, sem precedentes em nossa história. Uma nova percepção foi oferecida, elevando o nível intelectual da população, possibilitanto uma visão mais humanitária, fraterna, entre a coletividade. Nunca demos muito crédito ao fortalecimento das nossas forças armadas; na verdade, achávamos que isso vinha de encontro aos anseios que naquele momento eram vinculados aos quatro ventos por nossos grandes governantes. Eles haviam nos dito, e convencido, de que a paz era o melhor caminho, que não precisávamos investir bilhões em armas ou treinamento, pois a paz era uma realidade, e que os nossos vizinhos eram tão amistosos quanto nós naquele momento. Tudo foi investido em educação e embelezamento das cidades, trazendo a arte à vista, provocando uma maior sensibilidade nas pessoas, na imprensa, na polícia. Tudo era maravilhoso. Tínhamos esperanças realmente de que, com o projeto arrojado do nosso governo de eliminar os conflitos através do apaziguamento de qualquer sentimento de disputa ou intolerância, a nossa salvação e a de nossos filhos. seria certa .Infelizmente, pagamos caro por sermos ingênuos. A superpotência vizinha, um gigante bélico e o maior exército da terra, tinha outros planos para nós. Na manhã de um dia lindo de sol, quando todos estávamos em sintonia com a paz, mísseis de médio alcance atingiram nossas principais fontes de energia e as nossas unidades militares foram dizimadas por um avanço impressionante dos mais modernos caças supersônicos. Uma infantaria inimaginável transpassou nossas fronteiras de maneira colossal, destruindo tudo; nossa marinha nem saiu dos portos; tínhamos duas sucatas boiando lá; tudo se foi, toda aquela sensação de sossego, de harmonia, de irmandade que estávamos construindo. Os principais do nosso governo central fugiram, outros foram enforcados. Casas foram destruídas, a economia foi estagnada e tornou-se dependente do país inimigo, nossas mulheres foram violentadas, nossas crianças degoladas; todos os meios de obtenção de víveres foi confiscado e agora mantêm-se sob forte vigilância. Aliás, este foi o grande motivo da invasão. Esta superpotência, ao contrário de nós, planificou sua economia em indústria bélica e obtenção de tecnologia nuclear avançada, assim como transformar sua marinha, exército e força aérea em verdadeiros titãs. Não tiveram tempo para pensar em como alimentar o seu povo compenetrado na guerra. Nós, no entanto, tínhamos o smelhores celeiros e os melhores grãos da terra, e tudo era em abundância. Como um grande buraco negro, tudo foi arrastado para aquela grande boca, que até agora nos consome, recebendo uma modesta retaliação de alguns grupos de resistência, ainda empenhados em resolver o banho de sangue com diálogo e filosofia barata. E ainda estamos aqu; respiramos... não sei se vivos, e famintos.

Este tem sido o nosso grande problema. A fome assolou todo o país em escala imprescindível; no início havia alguns pontos onde conseguíamos comida, ou o resto , muitas vezes estragado, que os invasores depositavam no lixo. Mas de uns tempos para cá, acredite, eles não têm mais produzido lixo. Dizem que estão num processo avançado de transformação de resíduos em energia para manter os campos sempre verdes e as plantações em ordem. Água potável nos é enviada em quantidade que só dá para beber, mas comida é artigo raro. É claro que isso acarretou sentimentos diversos em todos; quando aparece algo, ou alguém, que avaliamos como comestível, avançamos com irracionalidade;não pensamos em moral, convenções ou pecadilhos. Não há pecado que se considere quando a fome faz o seu estômago doer. Temos um padre em nosso grupo. Ele no início ficou receoso quando juntamos uma criança que foi despedaçada por uma granada bem na nossa frente. Eu e mais dois esperamos a noite chegar, e quando o corpo estava frio, juntamos o que conseguimos e o assamos em uma pequena fogueira. Não houve nojo ou repulsa, o que vi foi a vontade insaciável diante das coxas, braços mais ou menos carnudos e vísceras daquele garoto. Nosso paladar já estava saciado, mas queríamos mais, como egoístas.Também perdi minha filhinha desta forma, e ainda vi quando uns homens a pegaram... seus gritos eram horríveis, e ela foi a fonte de alimento para aqueles que ali estavam. Não sei o que te dizer... quantos corpos já comi? Muitos. Desenvolvemos uma tão avassaladora fome que tudo o que comemos parece que não nos saciou plenamente, como no passado. Hoje o meu prato preferido são ratos cinzas, abundantes nos esgotos, alguns gatos que ainda existem e pardais. Estão por aí á vontade. São deliciosos . Nem sei mais qual o gosto da comida que tínhamos antigamente; se nos fosse oferecida hoje, seria rejeitada. O cachorro que comemos hoje rendeu uma briga enorme,e quase tínhamos mais um corpo humano para a janta. Juro que fiquei ansioso para um desfecho de sangue... Gula? O que você está falando! Comemos demais, é verdade. Quase não dividimos; o meu grupo não tem mantido aquele ideal fraterno de outrora... mas o que você quer que façamos? Temos que garantir nossa sobrevivência, que não sabemos até quando vai durar. Esta noção de que comer demais e demasiado é um vício já foi esquecida. Quando se está oprimido, não se pode pensar em bobagens deste tipo. Espero que tenha dito o que querias ouvir, mas agora vá... você pode ser visto, e sei que não quer ser o meu café da manhã ... he he he he... não volte mais. Adeus.