13 de dezembro de 2009

O dia que não aconteceu - final

Era tudo imprevisível. O mundo estava bastante tenso, dava pra sentir. Os beatles estavam também em uma fase ruim, se dissolvendo em brigas por grana e ideias. John havia encontrado Yoko, e o mundo não aprovou aquilo. Até quando um fã pode entrar na vida do seu ídolo, intrometer-se, opinar sobre seu trabalho, sobre sua vida? Eles eram os caras mais notados do mundo, e estavam se separando...
1970. O mundo, triste, observa o fim, nas canções do Let It Be. Eu estava num período complicado nesta época, perdendo também coisas importantes pra mim. Jane estava comigo em todos os momentos importantes pra mim; durante anos foi minha companheira, meu refúgio certo, seguro. Nos separamos havia pouco tempo. Tudo para mim ficou em segundo plano depois daquilo, até as pipocas. Comprei este disco pelo seu título sujestivo e tocante. "Deixe Estar". Os quatro rostos que sempre vi em revistas, tv, jornais, estavam ali leves e ao mesmo tempo artificiais. George tem o rosto mais agradável, Ringo o mais propício áquele momento de crise, Paul e seus olhos grandes, sempre significativos, e John, cantando despreocupado. Let It Be me levantou o astral, e aquele misto de nostalgia e de novas esperanças de vê-los em breve juntos.
Nestes últimos 10 anos muita coisa aconteceu na música, assim como na vida das pessoas. Nada pode ser medido em escala confiável, algo que possa nos dar segurança no futuro; o tempo correu rápido demais e agora estamos aqui, 1980, eu com minhas pipocas, num carrinho melhor, um frio de rachar a alma, em frente ao edifício Dakota. John sempre foi para mim um baluarte, um mentor, um ícone para se ter como referência. Suas intermináveis batalhas para permanecer nos EUA foram finalmente vencidas, e ele preferiu ficar conosco,aqui neste país democrático, injusto, mas que sempre o agradou. Tenho o privilégio de trabalhar na porta de sua casa, vê-lo quase todos os dias, muitas vezes até falar com ele. Lembro de uma vez em que ele veio comprar um saco de pipocas para Sean, e eu pela primeira vez pude falar com o homem que havia mudado minha vida, para melhor.
- Senhor Lennon...
- Sim...
- Gostaria de dizer que aprecio sua música... ela realmente me toca bastante...
- Oh, que bom... as canções sempre têm este objetivo... se surtiram efeito em você, só posso ficar satisfeito...
- Em mim e em milhões... o senhor deseja manteiga?
- Sim...
- Aqui está o seu troco... muito obrigado... a propósito... o senhor podria me dar um autógrafo?
- Pois não...
Ele assinou seu nome na tampa do carrinho. Aquilo foi fantástico! Agora muita gente poderia ver o autógrafo ali, uma marca indelével de que o leão-marinho esteve comprando pipocas comigo... tornei aquele ponto um lugar perene...
O frio era imenso... Dezembro sempre foi um mês agitado. Eu estava ansioso para ouvir o mais novo disco de John.. Double Fantasy... realmente estava afim. De uns dias para cá eu havia notado um roto diferente dos que geralmente frequnetavam aquele local, ponto de peregrinação para beatlemaníacos e novos fãs do trabalho de John . Ele tinha uma expressão acuada, cinzenta; um casaco comprido e um livro na mão, ele sempre estava ali, como que esperando alguma coisa, ancioso. Por diversas vezes sentei-me para descansar ao seu lado, e até arrisquei uma conversa, que não deu em muita coisa. Perguntou-m ese o senhor Lennon saía com frequência do apartamento, e queria autografar um disco, o Double Fantasy, que trazia tambem nas mãos. Uma noite dessas, John saiu meio apressado, com Yoko e outras pessoas, e este jovem que ficava ali inerte ,aguardando-o, levantou-se rapidamente e foi ao encontro do seu ídolo. Um diálogo aconteceu e John autografou o disco. Saiu, entrou em seu carro e saiu. O rapaz ficou no mesmo lugar de sempre, no banco próximo á entrada do prédio, e eu estava ali, ao seu lado, sem nenhum cliente.
Tarde da noite, John voltou também apressado, com Yoko apenas, meio que escondido para não ser abordado. Aquele cara, que já estava me dando nos nervos pois não saía daquele banco há alguns dias, levantou-se quando o viu. Num momento de impulso, saí em sua direção, com passos largos, afim de detê-lo. John estava feliz, era perceptível, e penso que às veze so assédio de fãs era irritante para ele. O rapaz quase corria, com a mão direita no bolso. Sua fisionomia havia mudado em alguns segundos, de uma expressão lânguida e sem graça para uma outra, revoltada e cheia de ódio, que me fez seguí-lo o mais rápido que pude. A entrada do prédio é larga e eu estava em vantagem de posiçãoe mrelação a´John, por isso consegui chegar junto dele com maior destreza; em sua frente, alertei-o que aquele homem que vinha em sua direção parecia querer machucá-lo, e fiquei em sua frente, quando senti algo quente entrando em meu corpo. A coisa se repetiu mais quator vezes. Minha visão parecia não mais obeceder ao cérebro e captar o que se passava, e John ficou atônito, sem saber o que fazer. Yoko chamou alguns policiais que estavam por perto, enquanto eu deslizava em direção ao chão, não mais sentindo meu corpo. O sangue começou a sair de minha boca, minhas mãos já não seguravam mais o braço de John, e ele me arrastou para dentro do prédio, mas era tudo inútil. Fui levado ás pressas para o Hospital Roosevelt, ali perto, mas morri poucos minutos depois, de múltiplas hemoragias. Dizem que John é um velho simpático e feliz... as pipocas já não são mais vendidas no Dakota.

12 de dezembro de 2009

O dia que não aconteceu

Nova York está tão quente... faz muito tempo que não vejo as pessoas tão à vontade com suas roupas, ignorando o inverno e o frio. Dezembro é sempre um mês de grandes expectativas; comprei um novo carrinho de pipocas. Os anos 70 foram difíceis, mas estamos aqui, e daqui a pouco é 1981. Nossa! Eu ainda estou jovem... 40 anos não é lá muita coisa, mas já vivi bastante, intensamente.
Os anos 60 foram os melhores! Ah, cara, você deveria ter visto aquilo! 1964... um ano que vai ficar marcado pra mim. Todo mundo estava ansioso para ver os rapazes londrinos que estavam agitando a Europa com seus cabelos despenteados e sua música americana renovada. Acho que foi isso que acabou atraindo a atenção da juventude; Elvis era nosso grande ícone, um verdadeiro senhor das massas, que com seu rebolado e canções para garotas, arrebatou todo um sonho de liberdade e rebeldia. Eu mesmo era bstante jovem quando ele apareceu, e não pude resistir a todo aquele apelo. Elvis sempre foi minha referência, minha música se resumia a ele, e quando saía para trabalhar com minhas pipocas, os cinemas estavam sempre lotados, todos assistindo aquele cara com cabelos engomados cantando suas músicas e mostrando como éramos, nós, os americanos do pós-guerra. Estávamos mais vivos do que nunca, inventando tendências, renovando os estoques de valores e abordagens juvenis para o mundo. Mas Elvis estava distante de nós agora, e algo lá pelos lados do Canal da Mancha anunciava o improvável: A América sendo reinventada e novamente colonizada pelos ingleses.
Já tínhamos aqui ouvido aquela sonoridade perfeita, o ritmo, conhecido, mas com vitalidade incomparável, desde 1963. Singles seus foram lançados por aqui e simplesmente estava atento a tudo, com minhas pipocas doces e salgadas. As reações nas ruas eram espetaculares, e todos aguardavam o momento em que aqueles caras viriam para cá. Em fevereiro de 1964, eu fui para o aeroporto JFK, disposto a vender e ver aquilo de perto. Eles estavam ali, meio tímidos,acanhados mesmo diante de tanta gente gritando e se contorcendo; o que será que passou na mente do John quando viu tudo aquilo? Nova Yok estava fria como o diabo.
O Plaza Hotel estava lotado de fãs em sua entrada, e foi difícil para os rapazes entrarem. Como já tinha vendido tudo o que tinha, aproveitei para espiar um pouco. O que era aquilo tudo? Milhares de pessoas amontoadas para ver quatro rapazes, ainda tímidos, entrarem no hotel e desaparecerem em meio a tantos seguranças e policiais. Nem o Elvis tinha feito aquilo antes! era tascinante, mas ao mesmo tempo, amedrontador. E eu continuava pensando: o que eles achavam daquilo tudo? estavam mesmo à vontade aqui? Pareciam mesmo pequenos diante do furacão. Na TV eles pareciam mais à vontade. A primeira aparição que fizeram foi sem dúvida emocionante. Paul e John, à frente, george um pouco mais recluso e Ringo logo atrás, numa harmonia impecável. Diziam que eles não ensaiavam para as apresentações, tudo era espontâneo, claro. Em casa, pude conferir seus rostos alegres e , mesmo assim, um pouco tensos, dos rapazes, mas no fim foi incrível. Os discos já vendiam como nunca se viu antes, e nos momentos de folga, lá estava eu com a vitrola ligada, o "A Hard Days Night" ecoando pela sala.
Chamaram toda aquela euforia de Beatlemania. Parecia mesmo algo assim; o mundo inteiro falava sem parar nos Beatles, com se eles fossem muito mais do que meros músicos do norte da Inglaterra; pareciam mesmo salvadores, messias, gurus enviados para para redimir o homem da mesmice, do tédio , da letargia que acabou acontecendo com o "American Way Life". Acho que aquela época deveria ser assim, um momento de transição mágica, entre a dor e a raiva que moveram as bombas de Hiroshima e Nagasaki e a força e a virtude dos jovens lutando por liberdades cada vz mais inovadoras, como o sexo livre e o pensamento aberto ao diálogo e ás mudanças. A América tinha dado o primeiro passo, e agora a europa já caminhava e mostrava aos yankees como a coisa funcionava. É claro que as guerras não cessaram por muito tempo, mas aquele começo era necessário.
Eu estava interessado naquela revolução, e fui contaminado pela euforia de estar ali, presente naquele momento. A rapidez com que as coisas mudavam, as gírias, as roupas, os pensamentos, as intenções, os rítmos; neste instante estávamos ouvidno "Shes Loves You", e ali, 1967, havia comprado um disco amarelo, com quatro figuras estranhas, remontando a animais, e um nome bem estranho - Magical Mistery Tour - na capa. A vibração era outra, os sentimentos também, e quando os meus ouvidos captaram a introdução melotrônica de "Strawberry Fields Forever", tudo fez sentido pra mim. O LSD era bastante consumido, eu mesmo já havia experimentado uma vez, em uma daquelas festas abertas para todos, promovidas por adeptos da teoria libertadora das drogas por Timothy Leary. Seu livro, "A Experiência Psicodélica" foi lido por John num momento em que estava procurando uma saída para as reverberações de sua fama repentina, o que ocasionou sua saída dos palcos com os Beatles e sua reclusão numa vida infeliz. Tudo isso estava à disposição em biografias e livros que eu lia avidamente. Minhas pipocas ainda eram vendidas da mesma forma, doces ou com manteiga, mas as pessoas não eram aquelas que vinham com olhares lívidos, ingênuos. Todo mundo estava "ligado", em sintonia com algo que não tinha ainda sido revelada, mas que certamente viria pelas mãos de algum salvador, ou salvadores. Lennon, ao escrever Strawberry Fields Forever, sabia o que estávamos procurando; ele mesmo estava procurando o que queríamos encontrar, pois ele mesmo estava aflito, parecia confuso, desnorteado, mesmo sendo um beatle, famoso e rico. "É fácil viver com os olhos fechados" , e tudo se encaixou, como uma luva em mão irmã.

Continua...