13 de fevereiro de 2010

Tratado sobre a Insolência - Parte III

Quando enfim a missa terminou, pedi a Eduard que me carregasse até o padre. É lógico que as pessoas continuavam a olhar, a mexericar uns com os outros sobre mim, nada que um olhar meu, contra-atacando com o mesmo desprezo e nojo, não pudesse resolver. O comum fica envergonhado quando é encarado, surpreendido com reprovação pelo alvo de suas conjecturas. Era particularmente divertido passar em revista àqueles imbecis, tão aleijados quanto eu, que ali estavam tão somente para buscar conforto, ajuda do além, pão para a alma, e nunca encontravam tais respostas,vindo sempre e mais uma vez indo embora, sem alívio. Eu, por outro lado, não queria redenção nem cuidados de um pai invisível. Estava ali para pedir explicações, uma vez que a ciência nada podia fazer por mim. Nossa tecnologia é atrasada e não benecifia quem vive em estado análogo ao meu; não representamos economicamente nada para a sociedade, nada somos senão estorvo, uma massa de gente contorcida, vil, mantida a distância e sem assistência. A ciência só favorece a quem contribui, ou a algo que seja viavel em termos lucrativos. Vi naquele padreco um meio de contestar esta ignomínia que perdura há séculos, com seus belos templos e suas belas homilias; talvez ele me ajude a responder tais ponderações.
- Senhor? Posso falar-lhe um instante?
- Sim, filho. (eu odeio estas assimilações de parentesco forçado)
- Preciso de algumas explicações... creio que o senhor é o mais indicado para me fornecer o que procuro.
- Em que posso ser útil?
- Diga-me, padre, por que deus é tão injusto?
- O que você está dizendo, filho? Deus não é injusto de forma alguma!
- Eu entendo que o senhor é um ser amargurado. Obviamente não poderia jamais falar em público o que vem ao seu coração todos os dias. Estamos no mesmo patamar, reverendo.
- O que você quer dizer com isso?
- Como sou impaciente com o cinismo! Somos iguais. Pelo menos eu tenho a coragem de inquirir um representante legal da cúria romana, dita instituída por Deus para salvaguardar o homem. Não percebe, padre? O que somos para este Deus semítico, estrangeiro? Deixamos nossos cultos pagãos, cheios de liberdade e misticismo sincero para abraçar sem mesmo cogitar nada um ser distante, carrancudo, misógeno e perverso. Tudo é vontade deste Deus. A guerra que nos assola é vontade de Deus que um rei mais forte se apodere de um menos capaz, que não rezou o bastante e que não beija as mãos dos arcebispos locais. A riqueza de algumas nações europeias é vontade de Deus, que acha que as civilizações que destruímos com nossa arrogância deveriam se subjulgar a nossas botas, nossas espadas e armas de fogo. Eu, padre, meu corpo, este mesmo que o senhor insiste em não olhar fixamente, em não analisar sem se perguntar, com aquela piedade sarcástica - "Deus, por que permitiste que este jovem sofresse com este corpo disforme, fétido?" - o que sou diante Dele? Sua vontade? Sua permissão? Nem sequer fui consultado no limbo das almas infelizes, destinadas a padecer do escárnio dos homens, se queria estas limitações, esta forma abortiva. Fiz questão de vir em minha primeira excurção à França procurar o seu Deus, padre, e ouvir o que ele tem a dizer.
- As palavras que acabei de ouvir são cruéis, meu filho, muito cruéis. Não vejo a Deus como sendo responsável pelas mazelas do mundo. Tudo acontece porque o homem quer assim, afinal, o mundo foi dado a ele no início. O homem domina tudo, cria aquilo que necessita para viver melhor, possibilidades surgem quando ele quer, e Deus é apenas um elemento passivo, não interfere em nada. Ele não é este monstro injusto e tirano, apenas não interfere. Não é culpado, inclusive, da sua condição.
- Diga-me uma coisa, padre. Se o senhor estivesse em meu lugar, o que pensaria sobre Deus?
- Não posso responder a tal pergunta. Cada indivíduo reflete diferentemente sobre sua condição. Dependeria muito do lugar de onde vim, da família a qual fui criado, uma série de fatores.
- Direi ao senhor o que penso sobre Deus. Um servo nosso, que nos serve de pretexto para fazermos o bem e abominar-mos o que somos realmente: bestas. Esforço-me para falar ao senhor estas palavras, e vejo que me entende bem. Isto é obra de Deus? Não! Isto é fruto do meu esforço, de minha vontade em comunicar-me, não se configura um milagre ou qualquer coisa que o valha. Insisto em reverter a condição que ele permitiu que acontecesse no dia do meu nascimento. Sou sobrevivente pela maldade humana de expôr deformidades, pois seria grato aos meus inúteis pais se eles me atirassem ao lago gelado que passa um pouco adiante de nossa casa, a qualquer tempo. Não revidaria nenhuma braçada de salvação, não teria como, e tudo estaria acabado. Foi permitido a mim a visão, que trai ao Criador toda vez que se depara com Rimbaud ou Dostoievski, e um cérebro que insiste, digo, insiste em pensar todo tipo de heresia, apostasia e blasfêmia. Permitiu-me o Senhor estar aqui, em sua casa, para cobrar o que me é devido saber de um sacerdote a princípio idôneo, e que até agora só me faz enrolar. Não creio, santo homem, que Ele seja alguém passivo, apenas complacente; creio ser ele cruel, tirano, insano e maldizente com o homem. Não o eliminou em Sodoma e Gomorra, Nínive ou no deserto para caçoar de nós. Este é o nosso inferno, nosso castigo eterno, nenhum outro mais.
- Você não precisa de respostas, filho, precisa viver um pouco mais. Nunca vi tamanha revolta num ser tão jovem. Creio que os velhos, estes sim, podem reclamar a Deus por não lhe prolongarem a vida, que usam dissolutamente, mas um jovem que nem sabe o que é a vida? Receio que você ainda não conhece o que esta vida, que você chama de disforme e impraticável, pode oferecer. O tempo é implacável com os que não sabem aproveitá-lo, e você perde tempo comigo querendo saber por que Deus permite cada estrela no céu, cada alvorecer, cada vida microscópica, cada dor, cada ódio. Viva, rapaz! Não amole o Homem com suas perguntinhas.
- Viver é tão facil para o senhor! Talvez realmente minha resposta não esteja aqui, devo ter me enganado. Deus parece ocupado demais com o vinho da sacristia e com visitas oportunas para um diálogo mais sereno. Vamos, Eduard, tire-me daqui.
- Viva, rapaz, viva! Nosso caminho até a morte pode ser mais longo do que se pode imaginar, e nela virá a resposta que precisamos, ou o descanso que necessitamos. Perde teu tempo apenas com o que te faz sentir esta única vida que tens, mais nada.
- Cala-te, velho! Senta-te em minha cadeira, urine em si mesmo, lance teu excremento em tuas pernas sem poder reagir e verás o que é minha única vida! Madito seja!
- Entenderás depois, jovem depois...

Saí dali com ódio ainda mais corrosivo. Eduard me levou até a beira do Sena, e ali, naquele inverno ameno, vi o curso do rio que passava, sem se incomodar comigo. Era tão suave, seu caminho tão correto, determinado pelo homem; canalizado de forma agradável, aquele rio poderia se tornar belo, tranquilo. O padre pode estar certo. Deus está em seu castelo, sem ligar para nós, por que eu deveria ligar para ele, ou perguntar-lhe alguma coisa? Santo dos Santos, travarei diálogo contigo na morte, antes, preciso viver. Eduard estava com sede, por isso decidimos ir até um local mais adiante, reduto de prostitutas, cavalheiros sodomitas e literatos fracassados, para bebermos uma cerveja alemã. Viva Deutschland!