10 de julho de 2010

Crônicas Malfadadas do Jovem Capistrano - Apresentação

Permitam-me uma apresentação formal. Chamo-me Capistrano (minha alcunha completa não é necessária; um fragmento, que acho o menos feio do todo, já é o sufuciente); jovem ainda, mas não tão disposto às dobras que os caprichos desta fase da existência possa proporcionar. Onde resido, o que como, com quem durmo, estas informações que são relevantes a qualquer primeiro contato social também dispensarei, deixando ao leitor (se alguém se propuser) a liberdade que só a imaginação atual pode conceder. Prefiro mesmo que esta relação se restrinja a isto: de minha parte, prometo ser o mais sincero e racional que puder, e isto não é um personagem de Poe, mas um simples organismo dominado pelo topo neural que decidiu compartilhar algumas impressões; e da parte de quem lê, a passividade reflexiva e silenciosa, quiçá um questionamento, uma réplica furtiva, dignas de quem tem sensibilidade e educação para ouvir, sem interromper em momentos inadequados.
O que proponho não me parece ser nada novo; eu diria mesmo que é tão clichê quanto o que se apresenta por aí em crônicas e bate-papos informais. Estas análises não se encontram em quem escreve; elas já estão aí, à vista de qualquer um. O que difere aquele que lê, o simples receptáculo da opinião alheia, às vezes dotado de algum senso crítico e, mais raro ainda, versado o suficiente para produzir algum contra-argumento, e quem produz o informativo, o que se vai ler, é a agudeza de espírito e a predisposição genética ao absurdo. Isto não se adquire; com isto se nasce! E digo mais: se faz necessária esta distinção, esta divisão de classes, mantendo-se sempre a distância segura entre ambos. Quem lê está por aí, a degustar das frivolidades da existência, dos prazeres e dos hormônios. Não estão muito preocupados em formular conceitos, chavões, máximas, axiomas, postulados. Quem escreve, este sim, sente toda a angústia do pensamento, da dúvida, dos sentimentos controversos e penosos; é o que não tem esta vida comum, que se dispõe a observar, pacientemente, a atmosfera humana em todos os ângulos, sendo atingido por suas vaidades, abominações, idiotices e raros momentos de beleza. Não duvide: isto é demasiado cansativo, e uma postura assim, masoquista, só pode vir do berço, de uma disfunção emocional, ou mesmo de uma normalidade exagerada.Toda a cultura humana, com o seu peso titânico, está fixada neste pedestal frágil, facilmente extinguível. Há os que leem e retêm o já mastigado conteúdo em suas gargantas, prontos para vomitar parcelas daquilo que a memória puder guardar em ocasiões que achem convenientes, e há os que escrevem , os que formulam os baluartes daquilo que consideramos certo ou errado. Estamos fritos! Se toda a nossa bagagem cultural está vinculada ás impressões alheias, é possível começar a entender o porque deste planeta não mais nos suportar, regorjitando-nos constantemente em catástrofes metereológicas e intempéries sinistras. Terei muito tempo para divagar sobre tais alumbramentos.
Sinto-me nos dois grupos citados acima. Existe também este reduzido e esmagado rol, de pessoas que tanto se convencem de que não é possível viver razoavelmente enxergando as realidades ao redor, quanto de outros que têm nos prazeres dos sentidos a grande fuga, o grande mote da saída estratégica. Neste jogo, prefiro ser aquele que escreve. Não nego minha imparcialidade, nem o meu distanciamento voluntário, e, ademais, não gostaria de encontrar quem lê estas linhas em algum café que frequento, ou em algum cinema isolado, atrapalhando este meu trabalho etológico com impertinências que podem facilmente ser respondidas aqui mesmo,neste ambiente virtual.
No mais, me vejo cansado deste primeiro contato. Voltarei, já que me propus a esta terefa, que espero não seja vã. Que o humor varie bastante, que os olhos continuem abertos e que nada se repita, ao ponto do leitor conseguir notar tal barbaridade, acusando-me de enfadonho.
Ao vencedor, as batatas!

8 de julho de 2010

Uma homenagem a Zpilman

Ainda estou vivo. Quanto tempo já se passou desde que esta inércia, esta ociosidade bélica se apoderou do mundo? Não tenho dúvidas hoje de que a guerra é odiosa, (somos realmente animais raivosos!), isso pela sua imensa capacidade de obliterar, de tornar o homem imperceptível, acuado,de ignorar vidas, sentimentos. De onde me encontro agora posso ouvir os tiros, os canhões a despejar suas cargas numa terra desabitada, que já não respira, e esta insistência, esta tola insistência em devastar é cansativa,insana. Meu corpo agora está habituado à inanição, à falta de higiene, às úlceras que certamente possuo, aos calos nos pés, aos dedos insensíveis. Meus dedos. Minhas mãos. Elas sempre falaram tanto...
Tínhamos uma existência agradável. Fica difícil lembrar com este frio, mais difícil é esquecer. Varsóvia era alegre, seus cafés e restaurantes, toda aquela aglomeração social; sim, éramos felizes. A rádio não ficava muito distante da nossa casa. Meu pai... meus irmãos... minha mãe... Será que se encontram em um bom lugar agora? Eles estavam ali, sempre, e quando temos a quem amamos por perto, diuturnamente, todo o sentimento que nutrimos por eles é demonstrado apenas em pequenas doses, acanhadamente; parece mesmo que nada pode abalar tal condição, aquela vida nunca poderia ser suprimida de forma abrupta, nunca nos deixaríamos,mas os nazistas me provaram o contrário,e esta estranha forma de agir eu só percebo agora, quando a morte os levou consigo.
Meu nome já era conhecido entre os músicos profissionais, e o programa ao qual eu participava, modestamente, executando Chopin, era bastante apreciado. Foi ali, naquele lugar que tanto adorava, que pela primeira vez tive contato com esta guerra hedionda. Todos fugindo, salvando suas vidas, tentando buscar um abrigo em meio aos gritos de desespero; eu não queria ir embora. Aquela era a nossa cidade, nosso lar, por que deixaríamos tudo? As explosões se intensificavam, e com elas a humilhação, a angústia; os corpos estraçalhados pelas ruas, tão de repente interrompidos em seu movimento de vida, atestavam que estávamos à beira do colapso, do imprevisível, do inimaginável.

Tudo foi muito rápido. Quando vimos, eles já estavam em todas as esquinas, todas as vielas, espancando, xingando, ditando suas ordens em uma língua que a maioria não conhecia, num esforço inútil de comunicação. Eles sempre se faziam entender. Suas pistolas Luger P08 falavam a língua da morte, da estupidez, toda vez que eram apontadas para alguém. Vi muitos sucumbirem por não entenderem o alemão, sempre com o mesmo semblante incompreensivo; os olhos perguntando, sem exigir uma resposta, o que eles fizeram, o que significava tudo aquilo. Também vi crianças na mesma situação. Nisto que estamos vivendo, não há distinção, todos estão passíveis do horror, e as crianças muito mais do que os adultos estão sujeitas a isso. Em apenas um instante, uma munição fabricada por pessoas que elas nunca viram acabava com suas dores, com os seus medos. Talvez, em algum lugar, algum dia, todos estes pequenos, arrancados da vida pela Schutzstaffel ou qualquer outra facção fascista, possam agradecer tais préstimos libertadores.

Neste sótão, uma pequena janela é a única coisa que me conecta ao mundo. Lá fora, eles acham que não mais existo. Os alemães acham que todo judeu não deveria existir, e mesmo os consideram não-existentes, fantasmas; acho que é por isso que matam-nos tão facilmente. E nisto, nesta fixação da morte, não há qualquer condicionamento. Naquela hora meu pensamento dizia que tudo é vão, que nada une os seres humanos, e toda a idéia, toda a forma cosmopolita de aproximação entre os homens, a saber, a arte , a musica, os conceitos morais, o amor, nada disso é aplicável quando a firme determinação de se exterminar, de se ultrapassar o outro, é a mentalidade válida da ocasião. E o que move geralmente este pensamento fixo? Tolices, quase sempre. Eugenia, a pretensa superioridade de certos tipos religiosos, de certos dogmas impostos, de certos tons de pele, estes que se desfazem por igual, tanto para germânicos quanto para judeus, nas frias covas rasas em que são enfiados, quando se morre. Pela primeira vez vi que toda a cultura que produzimos é inócua, frágil,e que a única coisa em que se deveria apegar-se era a esperança de que nada dura para sempre, nenhuma dor, nenhum ódio, nenhum amor, nada subsiste.

Quando estava verificando o ambiente em que estava, depois de dias sem sair daquele cubículo escuro, percebi que estava sendo observado. Não tinha muito este tino, esta sensibilidade para perceber que olhos estranhos estavam perscrutando meus passos, meus movimentos; nos grande salões onde costumava tocar antes da guerra isso era bastante comum, mas não havia esta sensação de ser abatido a qualquer momento pelo descuido de não se notar as presenças, como um rato diante de um grande gato escondido. Aquele oficial da Wehrmacht tinha me apanhado facilmente; eu estava exausto, preso ao medo e assim sendo mentalmente atento, mas psicologicamente desprovido, fraco, e quando o encontro ocorreu, pensei em ser mais um nas mãos dos carrascos, e pude me conformar. Dois homens, dois seres de uma mesma espécie, divididos pelos trajes, pelos sotaques, pelas idéias. Ele perguntou-me a profissão que desempenhava, e logo disse que era pianista. Aquele olhar incrédulo, por alguns segundos, era a minha sentença de morte certa; depois suas feições mudaram, e ele levou-me até um daqueles instrumentos de trabalho destes músicos. Há quanto tempo não havia tocado? O tempo era a coisa em que eu menos pensava. Todo o tempo do mundo, nenhum tempo do mundo, nada era importante. O piano estava sujo, também vítima dos atos violentos do seu criador primata, mas ainda afinado. Sentei-me e tudo voltou ao passado; não estava mais vestido com aqueles andrajos, não ouvia mais as metralhas russas se aproximando, nenhum disparo de canhão nazista, revidando aos ataques aliados, podiam mais me ensurdecer. Até mesmo a presença, que até agora era mórbida e calcinante, tornou-se obstruída, imperceptível. Não pensei muito, iniciei a Balada n. 1 em Sol Menor – Opus 23. No momento não vi razão alguma para tocar tal música, mas hoje entendo o por quê. Primeiro, Chopin era polonês. Aquele regime estrangeiro vinha esmagando tudo o que consideravam degenerado, abjeto, e Chopin não era bem quisto. O oficial não fez qualquer réplica ao inicio da execução, e então prossegui. A força, os movimentos rápidos, a agilidade de minhas mãos ainda estavam ali, mesmo com o frio intenso; a arte não havia abandonado o meu corpo faminto, ela estava acima de minhas forças, entranhada em algum lugar do meu cérebro, também escondida dos fascistas terríveis.

Esta balada, com suas nuances paradoxais – suavidade e violência, notas menores em predominância e vigor nas notas maiores, temática aguerrida – era o retrato do que éramos naquele instante. Não acredito que aquele oficial já não estivesse farto de tanta falta de sentido, de tantas vidas desperdiçadas, de tanto ódio gratuito, e, junto a um judeu derrotado e entregue ao niilismo da guerra, tivesse a oportunidade de se irmanar, de ser uma só audição, um só sentimento reflexivo diante do instrumento que não parava de rugir, ferozmente, nos dizendo que a beleza ainda existia, que o entendimento era possível, e que mesmo se todos estivéssemos mortos, tudo estaria ali, pronto a recomeçar com as novas gerações, que certamente viriam. Num momento de realidade, percebi a atenção que me era dispensada por aquele jovem oficial alemão, compenetrado, com a sisudez típica dos homens nórdicos. A musica chegara ao fim, e o silêncio que antecedia sempre uma atitude formou-se. Voltei a ouvir o fogo dos canhões, as metralhadoras a zumbir, os gritos, a dor, o desespero de homens que acreditaram que seriam deuses, maiores do que a História e as circunstancias e lições que ela sempre demonstrou, e que agora se viam em igual condição daqueles que eles ajudaram a massacrar. O jovem em minha frente pediu que eu retornasse ao esconderijo e aguardasse alguns dias; voltaria com algo para comer.

Esperar era um exercício fácil naquele tempo para mim. Meu organismo já havia se adequado ás intempéries da escassez, e quando o oficial, já com uma feição mais preocupada, deixou pão, geléia e doces em quantidade muito boa em minhas mãos, dizendo que não viria mais, pois os russos estavam às portas de Varsóvia e decididos a exterminar os alemães a qualquer custo, minha fome era basicamente controlável. Devorei aquilo em poucos dias. Algo diferente estava acontecendo... vozes, não mais em gritaria e confusão, mas conversando pacificamente, vinham do lado de fora do prédio, então decidi verificar. Civis estavam saindo de seus refúgios ... os russos haviam expulsado os alemães. Outros sotaques, estes menos carregados do que os germânicos, dominavam a paisagem; fui confundido com um alemão, mas logo o erro foi reparado. Era imensa a destruição, total a falta de víveres, mas o sentimento era de puro relaxamento. Tudo aquilo poderia ser reconstruído, da mesma forma os sentimentos bons poderiam retornar, mas não sem manchas; estas ficariam para sempre estampadas nas mentes que viram, ouviram e vivenciaram aquele horror. Agora os acordes poderiam sair de seus esconderijos mentais; flutuarem livres, e serem agora, depois de tudo, minha única família, minha única forma de superar o absurdo que vivi, e prosseguirem revelando ao mundo que sempre há a hora do recomeço.

Que ninguém esqueça os horrores que passamos.



Wladyslaw Zpilman - pianista polaco

1911-2000