28 de outubro de 2009

Inveja (parte 2)

Um louco, psiquicamente debilitado, era livre. Antes de mais nada, o maluco revelava ao mundo o seu desvio de conduta, sua indiferença. Neste trabalho, era condenado a viver degredado num desequilíbrio que os sãos criaram, uma vez que ninguém pode ser mais do que os outros desejam. Mais do que um movimento de ordem física, que John achava agora ser nada mais do que o contraditório, a réplica usada pelo doido, a loucura era fruto da sanidade. Os sãos julgam os atos insanos, e aquilo que para os normais parece ser imbecil ou estúpido, como tirar a roupa em público ou rasgar a bíblia, quando repetido, insistido, como só o louco faz perceber, tudo isso se torna ignorado, simplesmente relegando o indivíduo a um estado de ostracismo. Viu que na arte a coisa se processa desta forma, mas que poucos a considerariam algo vindo de um transtorno psiquiátrico; no máximo, fruto de uma extravagância. E a loucura não é isso, uma extravagância?
Na manhã seguinte chegou mais cedo à clínica. Recebeu um comunicado de um novo paciente, Sam, um jovem de 25 anos. O que estava em seu prontuário? Sam vivia a rir de qualquer coisa, mesmo daquelas mais absurdas e terríveis. Filho de um comerciante, órfão de mãe, era apático e misantropo; certo dia havia dito "então é isso?!" e desatou a rir, até hoje. Tinha 16 anos. A intensidade variava muito, mas não se podia ver outra coisa em sua expressão que não fosse um sorriso, muitas vezes transformada em uma gargalhada imensurável. John o observou e aquele garoto desatou por fim o sentimento que vinha provando de todos aqueles pacientes. Tinha agora inveja da loucura, de sua proposta heterodoxa de deboche, de desapego, de agressão ao que parece comum, ideal; Sam era a imagem daquilo que um "transtorno" poderia significar; a vida do Dr John Kurtis não era, em hipótese alguma, melhor do que aquela, mesmo com a inevitável e ainda arraigada noção de que havia sofrimento naquele comportamento. Não havia sofrimento. Eles nem ligavam para isso; possuíam a maneira ideal de tornar a vida leve, tratando tudo como algo sem propósito, sem utilidade. Sentiu-se envergonhado de tratar aquele acúmulo de liberdade algo tão pernicioso, seguindo os cânones médicos. Não foi para casa naquele dia. Resolveu, com o material que já possuía, procurar sua loucura, sua forma de visualizar as coisas, sua casa; sua mulher;sua vida. Invejava agora, sem culpas, todos os loucos do mundo.

27 de outubro de 2009

Inveja

John Kurts era um jovem psiquiatra que ia a pé para Clínica Birken, na Broken Avenue. Morava a poucas quadras dali e preferia deixar sempre o carro em casa. Não gostava de sujeira, nem papel de bala jogava no chão. Era naturalista, vegetariano, bom leitor, fiel à esposa, Mathilde, e não tinha filhos. Queria que sua vida fosse dedicada ao seu trabalho, às coisas que gostava e à mulher, por quem devotava amor sincero. Sabia a todo tempo que Deus o estava olhando, mas não procurava mantê-lo por perto, dentro de si; isso o deixava nervoso.
Seus clientes eram pessoas de todas as classes sociais, atraídas pelo carisma com que o dr. John atendia seus pacientes. Tinha como meta a liviar, de qualquer maneira cabível, o sofrimento que a prisão da loucura causava aos seus dependentes, incapazes de fugir aos traumas, às visões, à incongruência terrível que havia se associado entre suas mentes e a realidade. Os cérebros patologicamente normais não mais se interessavam por eles; da mesma forma, aqueles que eram postos de lado pelo grupo sadio não possuía mais qualquer ligação, comportamento ou necessidade de seguir os conceitos e padrões requeridos para se estar bem, saudável, são. O psiquiatra, segundo John, deveria ser estre entreposto entre os dois, mas não sabia muito bem onde o próprio médico estava situado.
Não trabalhava ali a muito tempo, portanto não possuía nenhum paciente em especial. Seu trabalho era inspecionar os internos, que sempre estavam a vagar pela propriedade, uma belíssima área verde, a única que restara naquela região de concorrência imobiliária. Estava em pleno processo de pesquisa para um doutorado e estava pensando em ter um filho, quando, daquela possibilidade de estar tão perto da loucura e das patologias da mente, como um visitante em um zoológico, ficou tonto, sentindo, pensando algo ruim, tenebroso.
Ele recolheu-se, percebeu sua vida naquele momento. Sentou-se em algum lugar ermo e pensou. Tinha 40 anos, e o que ele tinha vivido? Sim, possuía uma módica vida, aliás, uma bela vida; uma mulher adorável, sensata, submissa e capaz, que o auxiliava em tudo, o amava e tinha pretenções de ficar com ele para sempre, seguindo assim os desígnios de Deus ditos no altar. Ganhava razoavelmente bem, não muito, mas o necessário para manter-se; possuía uma boa casa, que conseguia pagar; móveis, aparelhos de utilidade novos, um cachorro. Tinha realmente seguido á risca tudo o que lhe foi proposto. Qual era então o problema? Sentiu de novo um mal-estar súbito,quando viu um paciente que estava ali perto. Ele rasgava uma bíblia, página por página, toda manhã. Robert era um pastor luterano que havia desembarcado ali há 10 anos. Ninguém nunca o visitava, mas a conta de sua estadia era paga regiamente, mês a mês. Sua existência não era mais importante; não viam nele mais do que um desajustado, um homem que havia produzido para as causas as quais acreditava, e que estava incapacitado, por achar que Deus abandonara o mundo à sua sorte. Sua mulher o deixou por um batista, seus filhos o abandoranam, o considerando apenas com a conta do asilo, sua igreja o rejeitou achando que ele estava sendo "revisionista demais". Tudo o que ele cria estava ali, naquele compêndio, e agora tudo havia sido posto à prova, e o pior, havia sido descartado. Por conta desta sua revelia blasfema de rasgar a bíblia, ele foi internado, dando os médicos o atestado conveniente para um homem que não se adequa aos padrões. John lembrava que Deus sempre o perturbou, mas que nunca o renegou verdadeiramente, não tinha coragem, aquela que levou Robert àquele destino. Por que nunca havia desafiado ninguém, pais, irmãos que o batiam, professores que ditava as regras? Robert tinha feito isso. Louco?
Viu , depois que havia se levantado e andava, aturdido por estas reflexões, outro paciente, e de novo outras revelações. Uma mulher, Bertha, se debatia numa grade que dava acesso à rua. Havia tirado o roupão e estava nua em pêlo. Ria dos que passavam, dizendo que eram ridículos, pois fazia um calor dos diabos e eles estavam ali, todos engravatados e com vestidos longuíssimos, não aproveitando a chance de se refrescarem retirando a "casca doméstica" como ela dizia. Vez ou outra parava, e tocava-se. Acariciava seus seios, que eram belos, seus cabelos ruivos e seu corpo bem torneado; John via tudo, e mais uma vez a injeva o consumiu. Tinha pensamentos ocultos, sexuais, que não realizava. Tinha medo do que sua mulher poderia pensar dele; um canalha, um hipócrita por desejar outras mulheres, por pretender outras situações que não incluíam sua amada cônjuge. Mas o que tinha isso de mais? Bertha estava ali por pertencer a uma família riquíssima, com vários senadores entre eles, mas que prezava acima de tudo pelas aparências sociais, coisa que sempre era maculada com algum escândalo descoberto. Ela, uma jovem com um futuro acadêmico promissor, tinha um gosto excessivo pelo sexo, de preferência com vários parceiros de uma vez. Sua reputação começou a declinar na universidade, quando suas aventuras começaram a ficar explícitas. Tinha um currículo excelente, mas era uma "vadia em potencial", diziam os alunos. Acessos mais frequentes de depressão e uso de barbitúricos se sucederam, até que pela prmieira vez ela tirou a roupa diante do campus enfileirado em alguma solenidade importante. Foi expulsa daquela renomada instituição, e sua família a internou para que "recobrasse sua consciência". Desde então estava ali. O sexo era realmente um tabu, uma forma de transgressão que poucos tinham a ousadia de experimentar. John era um destes. Uma vida sem satisfações sexuais, sem ousadia, um mormaço discreto. A loucura era um mote, um motivo para se libertar? Onde estava a vantagem em ser são, medroso e limitado? O dr John Kurtis estava chegando perto da resposta.

Continua...

23 de outubro de 2009

Ira

Não conheci ainda outro sentimento que não fosse a ira. Estou grudado a este corpo, passível a ele, que me gera, mas que não me quer. Eu escuto o que ela escuta, mas nossas mentes estão separadas; aqui, encolhido em um ventre já exaurido, espero o momento de ser tragado pelo mundo.
Moramos na rua. A do Hospício. Quando não está á procura de loucura, minha mãe fica imóvel, algumas roupas sujas, um prato imundo, uma caneca ainda mais imunda, pedindo a misericórdia de Deus para nós. Quem será este que ela tanto clama e que nunca aparece, e que ela sempre chama, mesmo assim? Nunca ouvi sua voz. As pessoas que passam parecem não ligar muito ; certo dia ouvi alguém chegar , estava lendo alguma coisa para ela e entregou um folhetinho ;minha mãe disse que não sabia ler, e o que ela precisava era de comida, não de Deus. Descobri que Deus era apenas um mote odioso. Não existia deus algum. Nunca ganhou um bom dia de ninguém. Nunca soube o que é ter um bom dia.

O que eu escuto é a voz de um mundo odioso.

Muita gente indo de um lado para o outro, apressados, com seus rostos desgostosos, saindo de casa obrigados para ir a um trabalho repugnante,onde se vendem por uns trocados; minha mãe também se vende; sempre ouço palavras como "faço por 10 real, moço, um boquete, o senhor não vai se arrepender". Às vezes sou sacudido, de um lado para o outro, se alguém aceita a proposta. Muitos falam da "buchudinha suja da rua do Hospício", numa clara alusão à sua profissão e ao nojo, ao que é descartável, e é isso que somos; me pergunto por que ela não me abortou, não me expeliu em alguma latrina, ou num mangue qualquer; preferiu, ao invés disso, manter-me vivo. Certamente achou que esse seria o meu pior castigo, castigo por atrapalhar a sua vida, por ter ganho a corrida por um lugar em seu óvulo, em insistir em crescer e lhe proporcionar sensações de enjoo e desmaio, dificultando sua locomoção pelos becos em busca de machos disponíveis. Sempre ouço seu lamento aos outros que passam, afirmando que eu sou um trapo que ela carrega na barriga. Sou um ludus naturae, uma brincadeira concebida, resultado de um prazer forçado com alguém que ela nunca viu; brigou com a namorada e quis gozar na cara de alguém, na vagina de alguém.
De uns dias para cá tenho ficado quieto. Minha idiota mãe pensa que morri; mas não. Tenho tido medo. Venho já de um ventre rejeitado, de uma mulher rejeitada, meu destino não é outro. Não queria viver como uma sombra, mas não tenho escolhas. Tudo o que preciso ter é ódio, rancor, um combustível que me faça viver lá fora, da mesma forma que me faz sobreviver aqui dentro, mesmo com este cheiro de morte por todo lado. Não ligo se lá fora posso ouvir pessoas se amando, nas praças onde dormimos às vezes, ou crianças sendo esperadas com carinho, quando suas mães vão às compras numa loja de artigos para bebês, onde também costumamos dormir, na calçada. Aqui é onde me sinto mais bestializado. As futuras mamães, todas exuberantes, adquirindo seus berços furta-cor, suas roupinhas dos enxovais, rosas ou azuis; toda uma perspectiva de futuro e alegria lá dentro, todo uma vontade de vomitar, aqui fora. Consigo ouvir,quando elas comentam o absurdo de uma mulher grávida estar naquela condição miserável. "O que será desta criança?", dizem; eu digo: provavelmente serei o pior pesadelo dos seus futuros e amados filhos, talvez a morte deles, o fechamento de um ciclo, impulsionado pela ira que sinto agora destas vadias hipócritas. Não ligo para minha mãe. Sou mesmo um corpo estranho, não enjeitado por conta das várias alterações químicas que me sustentam neste útero isalubre; até esta química eu odeio. Muitos perto de mim falam em suicídio, deve ser algo bom, já que dizem que encerra o sofrimento, a raiva.
Fui chutado. Minha mãe já sente as dores do parto, as contrações aceleradas pela violência de dois homens que ela chamou "os homi". Uma ambulância chegou e nos levou para um local onde eu irei nascer. Ainda estou aqui dentro, não sei se quero sair, a ira me dominou completamente, o ódio de estar neste mundo onde ninguém se respeita, ninguém se gosta ou é verdadeiro, e a vida é temperada pelo sofrimento e pela angústia. Suas dores continuam, lancinantes. Ela grita como uma louca; um tempo antes da agressão ela havia fumado uma "pedra"; ouço apenas o que ela ouve, sentimos coisas diferentes. Seu trabalho de parto se parece com o trabalho das pessoas lá fora, obrigado e imbecil, sem sentido. Não vou sair. Agarrei o cordão umbilical, única coisa que nos une, o que preciso para me separar para sempre desta dor, desta raiva que sinto já desta mulher, desta gente, desta vida que não tive. Consigo ver um pouco de luz; ela brilha muito... um homem dizendo que meu pescoço está enrolado no cordão, não tenho chance... até que enfim, natimorto.

17 de outubro de 2009

O Projeto Shiva - Justificativas sobre a guerra

"Apenas os mortos verão o fim da guerra"

Platão não poderia estar mais enganado. Esta instituição humana, este cânone, é a mais útil forma de progresso já vista. Daqui posso ver o resultado de dois anos de pesquisa, brilhando, quente. Dois anos sem aniversário de casamento, - a Debbie ficou possessa nas duas ocasiões - ,dois anos sem natal, ano-novo, churrascos de domingo ou reuniões na igreja. Dois anos dedicados a mais alta tecnologia de destruição e renovação. Chamei-a "Projeto Shiva." Renovação, porque penso que a guerra não traz apenas a morte, a devastação, o medo; também traz esperança, novas oportunidades, novas soluções, modo de vida mais ativos. O avanço de uns depende da derrocada de outros, e eu sei que estou do lado dos fortes.
Tenho uma família feliz, apesar da minha ausência. Trago comigo sempre a foto do nosso último encontro juntos, num acampamento que fizemos nas férias de verão. A Debbie é tão compreensiva. Uma companheira que sempre me ajudou a suportar o excesso de trabalho, além de cuidar muito bem de nossos filhos. Os dois vão bem na escola; Robert, o mais velho, pensa em seguir meus passos. Física. Foi o que eu sempre quis fazer na vida, desde criança, e fico feliz em saber que um filho se interessa por estes assuntos. Ele sempre pergunta sobre os projetos que desenvolvo; fica excitado quando falo que faço bombas; é aficcionado pelo Projeto Manhattan... ele é o meu orgulho! Tenho também o George. É um ano mais novo que o Robert, mas não se interessa muito por fusões nucleares ou coisas do tipo; gosta de ficção, arte. Sua mãe é mais apegada a ele.
Fiquei satisfeito quando fui convocado pelo presidente para integrar a força tarefa que iria participar do projeto da bomba. Não gosto de usar este nome, bomba; é como se fosse apenas algo maléfico, sombrio, algo negativo que não traria nada de bom para nós. Eu encaro como uma iniciativa de renovação da humanidade, de seus valores, de sua estrutura. Uma guerra significa justamente isso, um novo tempo, onde o homem coloca em prática aquilo que em tempos de paz adquire , nas academias, nas escolas, nos livros. E tudo o que vem atrelado ao desenvolvimento de novas esperanças bélicas? A indústria se movimenta em ritmo célere, aperfeiçoando novas abordagens de consumo, suas técnicas de produção e , consequentemente, trazendo movimentação de capital, geração de renda e emprego,dando oportunidades a quem, em tempos de paz, não conseguiria sobreviver dignamente.Problemas sociais como o desemprego, a violência contra cidadãos, a fome, todos são sanados, com toda esta geração de produção e postos de trabalho nas fábricas de alimentos, veículos pesados, e armas. Tudo se desnvolve na guerra. Não consigo mesmo ver desvantagem em um conflito armado. As melhores mentes se revezam em pensar a sociedade, os valores, o entendimento sobre nação toma um novo sentido; as pessoas gostam de estar irmanadas em alguma coisa, não apenas em futebol ou ano-novo, mas elas se envolvem quando o propósito é grandioso, e a guerra traz este bem-estar cívico, esta vontade de dar a vida pela terra que se nasceu, que se valoriza agora com mais ênfase. Novas drogas e novos procedimentos médicos são desenvolvidos, tudo para manter por um período maior os soldados em batalha, e com isso se ter menos baixas e maior êxito nas campanhas. Estes benefícios se revertem para o cidadão comum, que se utiliza das novas técnicas para sobreviver mais, trabalhar mais e assim ser feliz por mais tempo. Não há felicidade sem o trabalho. "Arbeit Macht Frei". A guerra não deixa de ser um trabalho, como qualquer outro, e venho me esforçando para que o meu trabalho seja bom. Chefio a comissão de beneficiamento nuclear para armamentos pesados, e confio que daqui sairá o grande milagre da ciência, fruto da dedicação de todos os cientistas envolvidos.
Debbie leu os últimos jornais e ficou apreensiva. Eu já estava ficando incomodado com aquelas perguntas sobre o que os periódicos estavam circulando; todos falavam de uma guerra injusta, contra um país indefeso, pontos de vista diferentes motivando a barbárie, o desrespeito às liberdades culturais, toda aquela asneira jornalística. Ela não conseguia entender que o futuro dependia da guerra para surgir, que o homem não pode se acomodar numa paz duradoura, onde nada acontece e as mentes se atrofiam. Aquelas noções de humanidade eram ridículas! Subjulgar um povo em melhoramento de outro não se constitui numa agressão humanitária; penso que só se comete agressão quando se incomodam nossos páreas, nossos irmãos nacionais. Um outro povo, uma outra visão de mundo, este sim pode ser usado como instrumentos empíricos de nossos esforços. Somos sempre taxados de imperialistas e demônios, mas são nossa tecnologia, nosso modo de ser, vestir, andar, ouvir música, nossa língua e até nosso deus, desenvolvidos nas guerras, que são usados por todos eles. Na verdade nossa intenção é esta: uma universalidade, onde todos possam ser como nós. Aí sim, creio que a guerra não será mais necessária. Ela ficou mais tranquila quando disse isso.
Enfim chegou o dia, aquele em que veríamos nossa disciplina, nossa capacidade criativa, nossa alma empreendedora em ação, em uma guerra de verdade, num país averso qualquer. Sempre havia estes lugares que nos desafiavam. Tudo estava sob controle, e nossas fileiras avançavam com grande facilidade e êxito. Os poços de Material Essencial estavam bem a nossa frente, segundo o general que comandou as operações. Um homem valoroso, que em uma semana fez um cerco memorável; certamente seu nome estará inscrito nos livros de história que o Robert irá ler no futuro. Fomos chamados à sede do governo para acompanharmos o lançamento da bomba, tudo via satélite. Isso sim é que é uma nação civilizada! Não precisamos estar lá, vendo in loco tudo se desintegrar, estar presente ao sofrimento e a dor que possivelmente aqueles seres sentiriam. Pensamos nisto, e calculamos a melhor forma de trazer uma morte tranquila e com o mínimo de exposição possível; somos um povo bem humano, sabe? E enfim ela foi lançada, na capital do país agressor. Ninguém sabia qual a agressão, mas isso não importa agora. Em poucos segundos, quando nossas tropas haviam seguido os procedimentos de segurança que havíamos criado e estavam em local apropriado, tudo se foi. Aquele brilho era fascinante. Pensei naquilo tudo. Aquele formato... um grande cogumelo encandescente, quente, destruidor para eles, renovador para nós... não consegui conter as lágrimas; tenho certeza de que o Robert está vibrando agora... o George deve estar dormindo; não importa; chorei quando ela explodiu. Shiva. Aplausos e congratulações pelo trabalho feito. Nossa, é estimulante viver neste país! Mal posso esperar a próxima guerra acontecer. Estou pronto!

11 de outubro de 2009

Num necrotério qualquer...

Toda a noite, sempre às 22:00, comaçava o expediente do Dr. Plínio num necrotério qualquer, de uma cidade qualquer. É um serviço bastante útil. Os médicos legistas estavam ficando escassos. Ninguém queria saber do corpo quando morto; todos estavam preocupados com a vida pulsando sem parar nas festas, nos clubes, nas praças. O corpo era mais bem requisitado vivo, de preferência bem torneado e apetitoso. O Dr. Plínio não via desta forma. O morto era a razão do seu trabalho, seu ganha pão diário, e ele via beleza na morte. Quando estava de folga, nem notava os corpos esculpidos e trabalhados que passavam por ele; nem qualquer outro corpo vivo; estava mesmo ligado na morte. Na faculdade, preferiu optar pela Medicina Legal porque todos desprezavam seus mortos, óbvio que havia o choro e o impacto da perda, mas a coisa ficava resumida a isso. Percebeu que o morto era gente, mesmo morta, mas ainda era gente. O legista se encarregava desta última atenção, deste derradeiro cuidado imprescindível a descobrir as causas da partida, do momento do fim. Por muitas vezes ele ficava a olhar os corpos que, na pedra, já nao tinham sorrisos, lágrimas, desejos ou mesmo dor de barriga, mas que revelavam, mesmo assim, algum traço de personalidade; personalidade para ele bastante significativa. Refletia no que aquele pedaço de matéria, já desaparecendo, estava pensando quando morreu; se tinha alegrias, se era desprezado, se se sentia idiota ou infeliz. Um vivo não parecia ser tão diferente assim de um morto; quando viver significa estar atuante, tomar posição, agir, num trabalho constante de cansaço, revigoração e novo cansaço; vive-se, morre-se - de tédio, de amor, de angústia, de sono - e vive-se novamente.
Numa noite, o seu antecessor no plantão havia deixado um suicida para ele analisar. Um garoto, de 25 anos, resolveu que não deveria mais ser agredido, maltratado, humilhado, por ser gay. Um legista deve se preocupar com todos os detalhes, circunstâncias e atitudes que levam aquelas pessoas ao estado que ele os encontra. O corpo possui suas impressões, suas marcas, coisa íntima que em vida não se gosta de revelar, que demonstra o que somos, como vivemos, e porque morremos. Aquele jovem não tinha o esteriótipo corporal exigido pela juventude para ser feliz e bem aceito. Deve ter sofrido por muito tempo. Seu estômago possuía várias úlceras, prova de que não se alimentava direito; era obeso. O incômodo de estar deslocado deve ter posto fim aos seus dias desta forma. Um pescoço quebrado em duas partes por conta da corda que foi usada para enforcá-lo. Fechou-o e o pôs novamente no frigorífico.
Havia também uma garotinha, uns 7 anos, dilacerada pelo pai, morta á facadas. O estupro era aviltante. Mas o Dr. Plínio tinha todas as credenciais necessárias para estar ali, há 25 anos, no mesmo lugar, naquela mesma hora. Não tinha família, mulher, filhos. Era recatado e taciturno. Guardava ainda suas marcas, sua identidade por dentro do jaleco e das roupas surradas que vestia sempre. Também pensava nisso. O que ele tinha a revelar, em vida? Não adiantava muito se guardar, ficar num recato muitas vezes tolo, não ser verdadeiro ou mesmo sincero com quem se convive, não viver a vida como se pretende viver. Num necrotério, qualquer um que fosse, tudo era revelado. O pai da garotinha havia expelido seu sêmen, idêntico àquele que formou sua vítima, naquele pobre corpo franzino. Era horrível mesmo o estupro. Um café e algumas torradas eram testemunhas daquilo; depois dos devidos exames e de uma formulação da causa mortis, o cadáver da menininha finalmente estava em paz, nos braços da morte, e sob os cuidados do Dr. Plínio. Sentiu-se evasivo naquele momento. Ele sabia a verdade, muito antes talvez do que a própria polícia, que dependia dos seus serviços de espionagem cadavérica para desvendar o crime. Podia tranquilamente olhar para o pai daquele anjo e o reduzir a nada. Mas era frio demais para isso. confiava que ela estava bem melhor agora, no nada absoluto, onde ninguém mais iria acordá-la à noite, retirando sua roupa e reduzindo-a a um objeto. Se existia um deus que nos tornava infelizes neste mundo, a morte era este alívio, esta mãe que a todos embala.
O plantão estava chegando ao fim. O Dr. Plínio estava tranquilo; depois da assepsia necessária, tomava um bom banho, vestia aquelas mesmas roupas surradas, sua maleta com alguns compêndios médicos encerrados lá dentro, um chapeuzinho que usava para esconder a careca, e saía, deixando ao próximo legista o trabalho de cuidar daqueles mortos. Ele mesmo se achava um morto... soturno, verdadeiro, em paz...

10 de outubro de 2009

Diálogos acerca da arte e de um vendedor de Cachorro Quente

O espetáculo começa em instantes. Alguém da produção veio aqui e falou. Não pareço tenso ou algo que o valha, mas não queria fazer isso, pelo menos hoje. O que eu queria mesmo? Biscoito guffs com café amargo e leite. Se eu pedir isso aqui agora, ja já aparece, mas não é a mesma coisa não. Todo mundo está fazendo o que eu quero ultimamente; minha mãe, que sempre me achou sem talento, meu pai, que sempre me achou sem graça, a turma que conheço, e que hoje estava aqui, no camarim, enchendo meu saco pela "bela atuação como o vilão Vinni na novela que acabara ontem"; até a prostituta que comi ontem fez o que eu quis, em troca da minha grana. Esse era o x da questão. Grana. Não sou bonito, mas tenho talento; contra o talento só se levanta um inimigo: a inveja. Os outros são destruídos sem piedade. A revista semanal que circula pelo país inventando bobagens, coisa que todo mundo compra pra ter o prazer de sacanear com quem está ali, disse que eu estava me drogando. E daí? A droga da vida é minha, a grana é minha... tinha um bocado disso na minha carteira, e mais ainda no banco, e mais ainda por vir; o que eu queria agora é estar ali, no lugar daquele cara do cachorro-quente; daqui do alto dá pra ver as menores coisas ... anônimo, uma mosca que ninguém percebe, talvez com suas mazelas, querendo vender uns malditos cachorros pra pagar a luz e o conserto de umas goteiras que insistiam em cair, molhando o quarto do Joãozinho, ou Zezinho, ou o diabo... todo mundo tem problemas. Aposto que ele queria estar no meu lugar agora. Quando viu o carrão chegando, abrindo passagem e quase derrubando seu sustento, sua forma honesta de ganhar grana, no chão. Eu não ganho dinheiro honestamente. Esta arte que eu faço não é honesta. Essa porra é uma ilusão barata, não dá pra viver o que se representa, e todo mundo paga uma fortuna pra ver uma mentirinha cretina contada por um rosto conhecido, que nucnca vai poder ajudar a ninguém quando eles realmente precisarem , ferrados por terem acreditado naquilo que eles viram no comercial, na TV, no teatro, em qualquer lugar onde exista um artista. O artista mente pra ganhar dinheiro, e vive de maneira bestial, sempre vendido, sempre ferrado. Mesmo assim ele queria estar no meu lugar; os olhos dele evidenciaram isso. Acho que ali rolou essa troca. Um fodido querendo renunciar a sua vida medíocre, cheia de infortúnios, pra viver o momento de sucesso e grandeza do cara da novela, do teatro, que ia pra mais uma apresentação de mais uma peça consagrada, uma de tantas que ele nem podia ver... um cachorro-quente era bem barato... só compra sobrevida pra mais uma sessão de chuva , de sol ou de frio na frente dos teatros por aí, mais matéria-prima pra mais cachorros-quentes pra mais sobrevida... só dava pra olhar os cartazes e os letreiros luminosos, as luzes refletindo em sua cara, cegando-o. É isso. Todo mundo ali estava cego. Como eles não percebem que o que eu faço é merda, tolice? As vidas deles são mais importantes... eles não deixam que eu viva como eu quero, submeto-me a eles e eles a mim. É foda! Se eu sair por esta porta e , em vez do texto que eu decorei a duras penas, um textinho ridículo escrito por um cara metido a bosta, eu vomitasse tudo o que estou sentindo, se eu deixasse de ser o ator e fosse eu mesmo, eles ainda iam me aplaudir, dizendo "que magnífico, fenomenal, excelente atuação", as revistas, os jornais, todo mundo que coloca as merdas diárias na cabeça destes idiotas iriam de novo manipular, mentir, inventar coisas, fazer com que tudo aquilo, minha desgraça, fosse apenas arte. O cara do cachorro-quente ainda está ali, uma chuva dos diabos... sua casa deve estar inundada; seus filhos e mulher ali, colocando as coisas pra cima, não deu tempo pra tapar as goteiras, a grana não chegou. Ninguém compra a porra do "hot dog". Quanto está o ingresso desta bosta de espetáculo? Cacete! Dava pra comprar uns 10 cachorros! Falar das misérias humanas, das dores humanas custa caro, e só quem não tem problemas como aqueles tem grana pra pagar o ingresso. É assim. Quem vive na merda não tem dinheiro pra extinguir as goteiras de casa; quem tem dinheiro paga pra ver estas misérias mascaradas, bonitinhas, refletidas em rostinhos ainda mais bonitos, interpretando o que eles veem todo dia na rua. Nem o ator famoso, nem o público abastado têm goteiras em casa, têm? A rua alagou... onde foi parar o cara do cachorro quente, caralho? A chuva é burguesa... retira da frente o que considera lixo, pobre, já utilizado. Acenderam as luzes, o show vai começar... quando acabar esta droga quero um cachorro-quente... bastante mostarda e molho caseiro, por favor.

Uma Carta de Vida e de Morte

H

oje é o meu ultimo dia neste mundo. O mar à minha frente. 23 anos. Todo dia um tempo diferente. A luz já não capta os objetos com a mesma intensidade, lá fora as coisas estão tão comuns. Fui até onde pude. É estranho isso. Nunca quis ir a lugar algum. Preocupações com minha aparência, minha forma de andar, de ver o mundo; nunca fui muito bom nestas coisas, e o resto do mundo sempre foi muito injusto comigo. Se eu não incomodava ninguém, supõe-se que eu também não gostaria de ser importunado. Ninguém me deixou em paz um segundo nesta vida. A começar pelo meu próprio nascimento. Não que a barriga de minha mãe fosse uma boa morada, e que seu útero estivesse gerando ali um fruto amado, esperado. Aquela imbecil sempre me disse que fui um erro, uma distração – o cara que a comeu estava na hora do almoço, não deu tempo dela usar o preservativo – “camisinha maldita! Se não fosse aquilo, eu estaria bem mais saudável, ainda transando e me divertindo por aí, com o meu trabalho, e não aqui, velha, aleijada e com este encosto perto de mim”. Ela sempre repetia isso, quase todos os dias. Quando não repetia, estava tão bêbada que nem podia ficar em pé. Usava a bebida para justificar tudo. Varias vezes a espanquei quando ficava neste estado. Eu, um moleque. Nossa casa ficava um pouco distante das demais e isso me dava a vantagem de não ser interrompido por nenhum vizinho enxerido. Maldita mulher! Meu pai foi este operário atrasado que a penetrou. Nada mais sei dele. Minha mãe também o odeia, mas não mais do que eu. Ela diz que ele tirou sua liberdade, sua beleza, fazendo um “bucho” nela. O que uma prostituta deve esperar da sua merda de vida? Se estava ali para transar com qualquer um, deveria saber os riscos, ora. O mundo é cruel. A mulher que se submete aos cafetões e às ruas não deve ter muita coisa na cabeça. Eu o odiava porque sua cara devia ser suja, corpo e cara sujos, e que poderia estar por aí, zanzando pela cidade usando seu pênis como instrumento reprodutor de outros miseráveis como eu. Sou um acaso. Nem gente eu sou, apenas um acaso, um encosto.

Resolvi acabar com minha vida porque nada muda. Quando se é um mero acaso, um encosto, nada muda mesmo. Cresci um pouco mais, e a circunstância me retirou do convívio daquela idiota da minha mãe. A saúde publica funcionou, pelo menos uma vez, e veio com seus agentes recolher aquela maluca para alguma casa de repouso, sei lá. Devem ter a levado para o inferno, e isso me confortou um bocado. Um alívio tomou conta de mim, mas durou pouco. Uma velha, dizendo ser minha avó, apareceu lá no orfanato e me levou com ela, mas não sem resistência. Queria ficar com as outras crianças, rejeitadas como eu, símbolos de abandono e desgraça. A inocência nunca será motivo para que as coisas ruins deixem de acontecer... só um idiota acredita no contrário. Eu lembro que mordi tanto a mão daquela velha nojenta que quase a arranquei fora; ela era feia, feia demais. No caminho para meu novo lar, a velha me deu umas pancadas no rosto, dizendo a um velhote de cara bem estranha, que dirigia um fusca 68, que sua filha era uma infeliz, e que eu era o motivo de tudo aquilo. Minha mãe também era muito feia. Por que o juiz não escuta a opinião das crianças? Elas não deveriam ter a prioridade de escolher onde querem ficar? E se elas não acharem legal um outro lar, uma outra rua, uma outra gente cuidando delas? Era ridículo tudo aquilo. Uma mulher que nunca vi na vida agora dizia que era minha avó, e que a minha guarda ficaria a cargo dela; mostrou o documento e tudo. Vá à merda! Eu não estava nem ligando. Cheguei em uma casa um pouco melhor que a minha anterior. Aquilo era um pardieiro imprestável. Minha mãe e eu mal conseguíamos nos mexer de tão apertado, lugar feito de taipa e algumas lonas, à beira de um córrego imundo no lugar mais violento da cidade. Todo dia via cadáveres na rua. Já estava bem acostumado com aquilo, e já estava torcendo pra que nesta nova casa eu pudesse continuar a vê-los. Sempre gostei de cadáveres. Assistia a todos os jornais policiais, que traziam os presuntos mais quentes, aqueles que eram e que não eram da vizinhança. Era bem complicado mesmo; eu tinha que ir para a praça do bairro, uns 15 minutos andando, para ver isso. Mal comia,não podia nem pensar em ter uma TV.

Minha adolescência foi vivida nesta casa, desta suposta avó. Nunca achei que ela fosse minha parente. Sabia que ela tirava um dinheiro mensal de algum programa social destes, porque sempre queria saber das minhas notas na escola. Eu era bem medíocre nos estudos. Aprendi a ler com 4 anos, mas nunca demonstrei facilidade pra ninguém,; ficava teimando, apanhando na cara, a tudo suportando, só pra não demonstrar nada a ninguém. Tirava notas baixas de propósito. Quando enjoei daquilo tudo, já estava com 9 anos. Muita surra, beliscões, tapas na cara, noites sem comer. Eu nem ligava. Estava sempre cheio daquela velha cretina e do velhote que morava com ela, sempre se esfregando naquele traseiro flácido. Havia um terreiro de candomblé atrás da casa. Em dias alternados, o barulho era insuportável. Coisa de gente estúpida mesmo. Também havia uma igreja no bairro, e eu sempre ia com uns vizinhos, que insistiam em me levar para lá, numas festas de adolescente; acho que eles não queriam que eu estivesse ali a toda hora, vendo aqueles “demônios incorporarem”. Com os evangélicos a coisa não era diferente. Como eu odiei aquele ambiente, cheio de gente hipócrita e barulhenta. Valiam-se de sorrisos hipócritas e discursos vazios para conviverem “em Cristo”. Grande merda. Eu nunca tinha visto esse tal de Cristo, e se o visse, nem ligaria, não precisava de mais um maioral pra mandar em mim ou naquilo que eu queria fazer. Pra isso bastava aquela catimbozeira nojenta. Como eu tinha ódio daquilo. A religião era sem dúvida um negocio para idiotas, fracotes e bichas. Na escola dominical, que eu detestava mas sempre ia, sempre por causa dos meus vizinhos, eu lia e ouvia coisas absurdas. Já entendia alguma coisa. Segundo aquele livrinho preto, as pessoas se isentavam das merdas que faziam se negassem a si mesmos e tomassem uma cruz. Duas coisas absurdas. Primeiro, quem nega a si mesmo? Eu era tão turrão que morreria defendendo algo. Aquilo era baboseira pura, porque quando aparecia alguém precisando de ajuda no culto, ou necessitando de algo pra comer ou vestir, um copo com água sequer, ninguém negava a si mesmo, dando espontaneamente. Nunca vi isso. Só este Jesus conseguia tal feito. Por isso deveria ter sido o maioral. Segundo, este papo de tomar uma cruz era escroto. Várias estórias daquele livrinho comprovavam que nunca dava certo tomar esta tal cruz; o cara se ferrava todo. Ninguém queria se ferrar, apenas se dar bem, e era dose acreditar naquilo ainda, depois de tanto tempo. Agora eu sei porque fazem tanta questão de encher as igrejas com crianças; elas são bem suscetíveis, impressionáveis , e levam tudo a sério.

No terreiro era a mesma porcaria. Um monte de gente cantando numa língua que ninguém, nem eles mesmos, entendiam, e uma barulheira dos infernos. Cosme e Damião, dois santos católicos, metidos naquela bagunça de deuses iorubás, era ocasião obrigatória da minha presença naquela loucura toda. Uma mixórdia terrível. Aquele gosto pelo inexplicável e ilógico era demais pra mim, mesmo sendo um rapazote de 14 anos. Umas velhas bêbadas completavam a zorra, dançando sem parar. Diziam que “tinham um santo”. Daquele tempo em diante, preferi não acreditar em deus nenhum. Não valia a pena perder meu tempo com aquilo.

E então me tornei um homem, e nada mudava. Não tinha lugar pra ir, nunca. Preferia ir á praia, e ficar lá, sem tomar banho, apenas olhando aquilo tudo. Minha vida estava uma merda naquele tempo, hoje também está, mas naquele tempo era difícil pra mim. Quando ficava pelas ruas, pensando já ali em entrar no mar e acabar com tudo aquilo, nunca conseguia. Se eu fosse morrer com data marcada, sempre disse, quero ser enterrado pelo mar... Tinha sempre que voltar para aquele inferno de casa, e todo dia parecia com o anterior. Um dia foi diferente. Saí de casa com a roupa do couro e uma sandália. Não via mais alternativa pra mim senão optar em viver sozinho, à sorte. Tinha 20 anos, e não agüentava mais aquela sujeira toda, aquela gente cretina. Neste tempo de rua conheci uma garota. Ela era riquinha e tal, e gostou do meu jeito espontâneo e da minha opinião sobre Salinger. Por que gente rica sempre estava atrás de literatura e autores metidos a sabichões? Disse a ela que lia sempre esse cara na biblioteca municipal, no centro da cidade. Era o único mendigo que tinha permissão pra entrar. Lia tudo, e isso facilitou minhas idéias. Ela me disse que estava apaixonada. O que? Mais que droga! Só por que eu li Salinger? Como os ricos eram bestas! Entrei na dela e começamos uma parceria. Disse que eu ia sair das ruas logo, porque o velho dela era um grande empresário e que fazia tudo o que pedisse. Tinha um apartamento á beira mar, e me levou com tudo pra lá. Ela era doidinha mesmo, mas no começo era bem gente boa. Comprou roupas novas, me deu um banho, deu um trato em minha aparência de condômino das ruas, beijou minha boca e falou que estávamos juntos, bem assim. Depois de algumas semanas, disse que eu pertencia a ela. Não gostei daquilo. Como assim eu era dela? Sabia que cachorros tinham dono, galinhas tinham dono, mas gente? Sei lá se eu era gente... pelo menos não era eu ali vestido com aquelas roupas idiotas, da moda. Ela me jogou na cara tudo o que tinha feito, todos os favores. Eu comecei a compreender. Tudo aquilo era somente farsa, hipocrisia, mentira, pra ter alguém com quem sacanear, ter como objeto, escravo. Ela nem tinha jogado a roupa velha fora, disse que ia queimar, a peguei, tirei aquele lixo que estava vestindo, coloquei a minha roupa, única coisa minha de verdade ali, e saí. Sei que tinha muita gente querendo uma chance daquelas... seriam muito felizes inclusive; talvez um daqueles lá da igreja, do terreiro...

Hoje é o meu ultimo dia neste mundo. Já estou certo disso. A frustração ainda me consome... pelo meu pai, que nunca vi; pela minha mãe, chapada e maluca; pela velha, minha suposta avó e pelo velhote que se esfregava nela, sempre; pela igreja, pelo cara da cruz, aquele bobo; pelo santo do terreiro, que nunca entendi a língua. Um dia pensei que não poderia culpá-los. Já que estava aqui, deveria procurar mudar as coisas, viver de forma diferente. As leituras que fiz me disseram o contrário. Sempre tem alguém por trás de toda a merda que a gente sofre. Sei lá. Não ligo mais pra isso. Já chega. Romper com a vida vai significar pelo menos uma mudança. Única. O mar está impaciente... ele e a ressaca vieram com tudo; parece que estava lendo meus pensamentos quando eu ficava aqui, observando seus movimentos. Vi um dia os olhos do mar. Estava chovendo pra caramba, e eu estava tomando conta de um quiosque aqui perto, quando vi seus olhos. Um ponto fixo que a gente consegue captar e pronto, eles aparecem. Talvez porque eu já tenha desabafado tanto com ele, tenha sido minha única companhia em todo este tempo de rua; talvez eu o tenha estimado tanto por ele ter sido como eu sempre fui, sempre o mesmo, com suas tempestades, suas ressacas, suas calmarias, talvez por isso me tenha deixado ver seus olhos, sempre azuis. Às vezes ele era cruel comigo, trazendo uma ventania fria, a chuva com ela... mas quem não tinha sido cruel comigo nesta bosta de vida? O mundo era cruel comigo, e vi que não estive sozinho nessa; muita gente amargurada, chorando por aí. Mas danem-se! Não quero saber desses fracotes. Hoje é meu ultimo dia vivo. O mar está me chamando... talvez volte... o corpo mordido pelos animais marinhos... se tiver sorte, nunca mais volto aqui.

P.S: A quem encontrar estes papéis rabiscados, por favor, rasgue-os ao ler e ponha-os no lixo. Não suje a cidade...

6 de outubro de 2009

Ode ao Incesto - Última parte

Quis saber mais sobre o incesto. Não tinha certeza se aquilo era algo ruim de verdade. Os pastores falam demais; querem sempre a melhor parte... li alguma coisa nos livros velhos que tinha, e descobri que todas as culturas antigas não aceitavam o incesto por razões biológicas: o cruzamento entre parentes consanguíneos provocava alterações graves nos descendentes que poderiam ser gerados, causando anomalias, deformações e morte. Lembrava do versículo... ele dizia algo diferente... quando um homem se deitasse com sua tia, ele apenas iria descobrir a nudez do tio. Não era imputado a ele qualquer sanção, como por exemplo colher o trigo no sábado, ou tocar na arca da aliança, pecados passíveis de morte imediata. A única coisa que trazia o texto era que ambos iam morrer sem filhos. E quem queria filhos? A tecnologia do sexo está avançada; contraceptivos disponíveis no mercado, camisinhas... não havia mais incesto, a gravidez era algo remoto protegendo-se. Percebi isso justamente quando minha tia não saía mais da minha cabeça.
Mais um final de culto, mais uma demora para ir embora. Eu estava realmente incomodado com aquelas reuniões particulares de minha tia com o pastor Tobias; naquele dia eu resolvi espiar pela fechadura, coisa tão simples e que eu nunca havia pensado antes; talvez agora a coisa tivesse mudado de figura, talvez agora eu estivesse realmente a reparando , o seu corpo. Olhei , não tinha chaves, e a vi, saia levantada até a cintura, sentada no colo do pastor Tobias, com as pernas abertas, aquela bunda enorme cavalgando em cima do homem, que quase estava tendo um troço. Seus seios estavam enterrados na boca dele, e ela estava adorando tudo aquilo. Olhei um pouco mais, e depois fui para o meu lugar. Ao sair, depois do tempo necessário para o suor do rosto secar, ela saiu, vindo em seguida o pastor, com aquela cara de panaca. Se despediram com ao maior sinismo do mundo, e fomos pra casa.
No caminho , perguntei o que ela tanto fazia naquela sala com o pastor depois do culto. Ela falou que vem passando, há anos, por um problema de ordem espiritual, e que o pastor Tobias tinha muita fé, e a ajudava a "expelir aqueles pensamentos, colocando outros em minha mente". Perguntei que problema era aquele, que levava todo aquele tempo pra ser retirado, e ela calou-se. Disse que não podia dizer em hipótese alguma, mas que um dia eu iria saber. Neste momento, chegamos em casa.
Não ia mais aguentar aquilo. estava ficando sufocante, terrível mesmo. Meu tesão por minha tia ia crescendo a cada dia, a cada olhada naquele rabo, a cada lance de pernas, a cada abrir de boca. A faxina do sábado era o melhor dia para mim, pois todos estavam fora, só eu e ela em casa; a maldita usando um short curtíssimo, sem nada por baixo, um top que deixava 80% dos seios à mostra, com o rádio ligado em alto volume, cantando louvores a Deus. Que cara ingrato pé você, Iavé!!! Fez com que eu chegasse à adolescência, hormônios fervendo, pinto duro, querendo comer minha tia a tdo custo... não agunetei mais...num vacilo que ela deu, abaixando-se para pegar a vassoura, eu a peguei por trás, sem camisa, já pronto. Ela levou um susto, ficou parada esperando algum movimento meu, eu logo apanhei seus seios nas mãos, puxando os mamilos e alisando-os; ela gostou do que fiz e logo pegou minhas mãos e ajudou-me a fazer da forma que ela gostava. Virou-se e não perdeu tempo com reflexões sobre o caráter pecaminoso do incesto; derrubou-me no nosso velho sofá (pensei que ele não iria aguentar) retirou minha bermuda e fez aquilo que ela, ainda hoje, pratica com perfeição. Segurei sua cabeça enquanto ela realizava tudo, e depois daquilo, ela indicou-me o caminho para que eu fizesse o mesmo com ela. "Com a pontinha da língua" dizia, gemendo. Mostrou-me seu membro, duro, que ao mínimo toque de minha língua trazia a ela o maior de todos os bens; depois daquilo, coloquei-a de quatro, e a comi como um louco. Ela gritava de prazer, e pegava minhas mãos e colocava em seus peitos, e eu puxava os bicos com violência. Depois de algum tempo naquela posição, disse que eu queria que ela fizesse em mim o que costumava fazer com o pastor nos domingos, após o culto. Ela arregalou os olhos, mas estava tão sedenta de mim que nem deu muito crédito. Sentei no sofá, e ela, sentada em meu colo, abriu as pernas e cavalgou quase meia hora, colocando os peitos para que eu chupasse. Aquela bunda é mesmo o seu maior tesouro, tanto é que ela logo quis me dar. Colocou meu instrumento todo, sem gritar, apenas gemer. Até hoje ela gosta que eu a coma por trás, e eu não rejeito esta forma de amar. Depois, novamente de quatro, pediu que eu fosse mais rápido, fazendo com isso que ela gemesse até gozar; fiz o que ela me pediu, afinal , não gosto de decepcionar as pessoas. Depois daquele mar de sensações, ela deitou-me no chão,e novamente em cima de mim também me fez gozar muito. Nesta hora veio uma sensação estranha, de que tinha feito besteira; minha tia logo se adiantou, e disse que isso era normal quando os homens gozavam... geralmente ficavam bem racionais, pensavam muito mesmo. Fiquei mais tranquilo com essas palavras. Muitas vezes eu repeti aquele transa com minha tia, e ela até hoje, passados alguns anos, ainda me procura, e eu , como gosto do seu sexo, também a procuro. Hoje eu me sinto feliz. Não estou praticando nenhum pecado mortal ,digno de morte. Apenas não terei filhos, e morrerei, como todo mundo. Hoje estou feliz.

5 de outubro de 2009

Ode ao Incesto - parte 1

Cara, acho que agora sou feliz. Como é bom viver! Da forma como as coisas iam estava sufocante, terrível mesmo. Moro no subúrbio de Nothing Hill. Pra falar a verdade, moro numa favela. A pior de todas. Ninguém quer vir aqui... os governos, a polícia, Deus, o Diabo, a ambulância, o caminhão do lixo, o carro da casa funerária. Todos temem este lugar; a Morte mora ali... daqui mesmo eu vejo a sua casa. Poucos são os que se aventuram a vir morar aqui, e minha família se orgulha de ser uma das pioneiras. Aqui não tem nada. Uma escola decente;uma praça organizada onde os velhos possam se movimentar e as crianças possam exercer suas funcionalidades; uma pizzaria bacana e segura; uma sorveteria; um mercadinho; nem mesmo uma rua calçada, pra se colocar as cadeiras pra fora, conversar até as 22:00... eu ouvi dizer que existe um lugar onde tudo isso é possível... deve ser mentira.
Tem um bar, sabe... mas bar não é um bom lugar pra um sujeito como eu... afinal de contas, minha tia sempre diz que sou um cara bom... muito bom...
Havia um lugar onde toda a comunidade podia se reunir, mas não sem receio ou medo. A igreja. Ali havia fogo, trovões do céu, palavras de poder e ninguém saía sem uma bênção. Era medonho. Eu sempre vejo pessoas caindo, chorando, ajoelhadas, algumas poucas em estado normal. Mas quis Deus que assim fosse, e todos se encontram lá. Dez pessoas vivem comigo. MInha mãe, dois irmãos, uma irmã,quatro sobrinhos e uma tia, a Mariluce. Meu pai eu não conheci... uma bala perdida o alcançou antes, naquele bar que eu falei agora há pouco; essa minha tia é irmã dele.
Eu frequentava uma igreja aqui perto de casa. Minha tia também. Não via muito sentido naquilo, mas como ela sempre me chamava para lhe fazer companhia, eu ia de bom grado. Não gostava de decepcionar as pessoas. Os cultos eram barulhentos; o templo não tinha ventilador e os dízimos eram sempre cobrados; minha tia era bastante atenta às palavras do pastor, atenta até demais. Sempre quando acabava o culto, eu ficava esperando sozinho , mais de uma hora ,ela sair do gabinete pastoral. Ela sempre falava do pastor Tobias pra mim... "um homem sábio" dizia.
Foi numa destas vezes de domingo que algo me chamou a atenção ,profundamente. Eu nunca ligava para os sermões. Era massantes, chatos, e eu nunca era "tocado" com nenhum deles. Minha tia sempre dizia que aceitar a Jesus purifica do pecado, qualquer pecado. Sempre que ela cometia algum, pedia perdão e a coisa funcionava, pois ela dizia sentir "uma leveza, um bem-estar, que só o perdão é capaz de proporcionar". O pastor Tobias estava lá, com unção e poder. Falava de alguns costumes antigos, lá pelo tempo de Moisés. Citou vários versículos, um destes foi bem peculiar...

"
Quando também um homem se deitar com a sua tia descobriu a nudez de seu tio; seu pecado sobre si levarão; sem filhos morrerão."

Levítico 20:20. Nunca mais esqueci. O pastor perguntou como era conhecida aquela prática, e alguém gritou lá atras: INCESTO. Eu peguei a bíblia, enquanto esperava minha tia numa de suas longas comversas com o pastor no seu gabinete , e li, reli e li de novo aquela passagem. "Quando um homem se deitar coma sua tia"... deu pra parceber claramente que não se devia transar com tias, pois assim se desobriria a nudez do tio... eu só conhecia uma tia, e esta não era casada. Tinha 35 anos; naquela época eu já estava reparando suas curvas... ela se vestia com saias muito justas, denotando todo o seu traseiro enorme. tinha lindos seios pontudos e firmes, medianos. Pernas grossas, assim como lábios também grossos, completavam o conjunto. Eu gostei do que vi. Reparava também que, quando fazia aquele calor infernal e eu ficava sem camisa, em casa, minha tia me observava diferente; dizia que eu "estava um homem", e que as meninas deveriam estar loucas por mim. Estavam nada. Vieram depois as revistas de mulher pelada e as masturbações constantes. Logo minha tia estava lá, em minha mente fértil, todas as posições...

Continua...


3 de outubro de 2009

Recordações de um Amor Desgraçado

A chuva regava o cemitério naquela tarde escura. O caixão descia suavemente à cova com poucos espectadores, os necessários aos serviços funerários e eu. Fomos felizes. Edwin estava morto, e eu continuava a não aceitar o destino que se havia traçado; por que naquelas circunstâncias? Éramos assim tão desgraçados a ponto daquilo acontecer? O que fizemos de mais? Lembro ainda quando estávamos no hospital, aquele cheiro de éter desinfetando o ambiente, aqueles enfermeiros levando-me, separando meu corpo da única pessoa que amei na vida, e que agora fechava os olhos para sempre. Deus para mim nunca foi significante, e daquele dia em diante tornou-se sinônimo de ojeriza e repúdio.
Conheci Edwin na Universidade de Jerusalém. Naquela época, um pouco mais do que hoje, não eram permitidos sequer comentários nos conrredores sobre a atuação de professores gays no campus. Eu participava de pesquisas atômicas para o governo. O então Dr. Edwin Stevens, catedrático de Literatura Comparada, era discreto e fascinante. Negro, um tipo exótico naquele círculo, conseguira seu espaço no mundo acadêmico graças aos seus méritos individuais, independentes e sóbrios; doutorou-se em Oxford tratando de Oscar Wilde e sua prosa. Não poderia ser outro autor. Wilde sempre lhe despertou o interesse; quando estávamos deitados, depois da simbiose a qual nos metíamos sempre, sem avisos, porque sempre era a oportunidade perfeita para o amor, bastava nos olharmos, ou nos tocarmos ocasionalmente, ele lia para mim este trecho célebre do Retrato de Dorian Gray:

"sou de parecer que se o homem vivesse plena e totalmente a sua vida, desse forma a todo sentimento, expressão a toda idéia, realidade a todo devaneio... creio que o mundo receberia um novo impulso eufórico,um impulso de alegria que nos faria esquecer todos os males do medievalismo e voltar aos ideais helênicos..."


Vivíamos desta forma. Um mundo onde a dor não nos importunava, estávamos a salvo do ódio, da malícia, das más línguas, da inveja do mundo, do preconceito do mundo. O recato e a discrição eram requisitos fundamentais para que isso acontecesse, mesmo sabendo que em Israel nada podia estar longe do alcance da Torah e dos seus "representantes". Aquele livro foi o motivo de toda a nossa desgraça. Edwin o temia, não por suas palavras sempre agressivas aos gays, nem pela omissão que ela permitia nos casos de homofobia gritante, sempre levantadas, mas do poder que a palavra possuía. Ele, como nenhum outro, conhecia este poder, lidava com ele todos os dias, tratava destes assuntos quase sempre, e via nos olhos dos alunos, nas expressões das pessoas na rua, o mal que aquela má interpretação causava nas mentes. Não havia regras quando se tratava de desobediência ao livro sagrado, nem aos costumes judaicos.
Os costumes. Manter uma aparência era bem mais fácil do que assumir reais intenções. Um dia Edwin disse que iria de encontro àquilo. Iria usar de sua influência dentro da universidade para desenvolver uma cultura de tolerância, mesmo sabendo que não era possível uma totalidade, uma adesão massiva. Mesmo ali os dogmas dominavam, e os jovens estavam mais dispostos a manterem uma postura homofóbica, mosaica, talmúdica. Temi muito sua resolução, mas não poderia deixar de apoiá-la, afinal de contas também era parte daquela instituição, e também era gay. Mas Edwin queria mais. Não só a questão sexual seria levada à público nesta nova abordagem, mas também o fator religioso da sociedade israelense, principal base de argumento para o preconceito, o descaso e a falta de políticas públicas em favor dos homossexuais. Longe de ser um pedido ou um clamor, o projeto visava a inclusão do cidadão gay israelense nos negócios do Estado; nada mais justo, uma vez que estes eram cumpridores dos deveres com impostos e com as leis em vigor. "Não vamos pedir esmolas ou nos ajoelharmos, como é o costume daqueles que necessitam de perdão ou querem confessar algum crime, o que faremos é o reconhecimento formal da cidadania homossexual como um direito constitucional, que dita que todos somos iguais perante a Lei. Se assim não fomos considerados, deixaremos de pagar nossos impostos. Não seremos cidadãos de segunda classe neste país" dizia Edwin. Sutilmente ele começou a implementar esta discussão em sala de aula, trazendo o debate para todo o campus. Os reitores obviamente questionaram esta postura, e publicamente retrataram o movimento, dizendo que aquela instituição não iria compactuar com tamanha falta de vergonha e desrespeito aos judeus ali instalados. A Ação pelo Direito de ser Gay e Ateu - nome dado ao projeto, ganhava mais adeptos em toda a universidade. Mas as retaliações começaram a acontecer. Edwin e eu fomos demitidos sumariamente do campus, e fui também afastado do governo. Naquela altura toda a imprensa se mobilizava em nossa órbita, e suas demonstrações de parcialidade e até mesmo de deboche, em programas humorísticos e telejornais, irritavam, mas também eram esperados. Grandes corporações judaicas estavam por trás daquelas empresas de comunicação, e tudo o que elas queriam era a desmoralização do movimento. A grande massa nos detestava. Não tínhamos mais aquele sossego antigo, nem para chegar em casa. Nosso muro era constantemente agredido com palavras que mais pareciam aquelas dos tempos nazistas, quando aquele mesmo povo estava na berlinda. Como pessoas que foram taxadas de vermes e piolhos, maltratadas, humilhadas, assassinadas e reduzidas a nada em outros tempos poderiam estar admitindo este tipo de comportamento em relação a um grupo, simplesmente por não partilharem suas posições na cama, ou a forma como o prazer era encarado por eles, ou o deus que eles criam? Dizer que Deus estava zangado e que o inferno era o lugar dos sodomitas eram frases constantes neste ataques.
A coisa tomou proporções assombrosas. Grupos ortodoxos declaravam que iriam tomar atitudes drásticas em relação aos participantes daquela "infâmia contra Moisés". Achávamos que tudo aquilo era medo, receio de que os tempos estivessem a mudar, pânico de que suas instituições, aquelas mesmas tão antigas e tradicionais, estivessem erradas, e que um grupo estivesse se levantando, se organizando contra os abusos da fé que eles instituíram, mantendo-se no poder temporal e espiritual por tanto tempo. Nossa casa transformou-se em pouco tempo em um lugar de peregrinação para aqueles que ansiavam a liberdade, a hora de poderem expressar seus sentimentos, suas vontades, suas paixões, em praça pública, sem com isso quebrar qualquer regra, violar qualquer preceito legal. Uma marcha foi organizada para percorrer os principais recantos religiosos de Jerusalém, numa forma de partilhar os sofrimentos que o preconceito havia causado a uma parcela da população, assim como o Cristo fora rejeitado e humilhado. Este dia não poderá ser esquecido, pela sua audácia e pelo fato de que ali, naquele dia, o grande amor de minha vida foi retirado de mim. Estávamos à frente, com faixas exigindo o fim dos bloqueios aos profissionais gays nas universidades e instituições, quando o tiro foi disparado, atingindo Edwin no peito. Não pude me mexer. Tudo foi muito rápido. A multidão, tanto de simpatizantes quando de algozes, foram dispersadas com o estampido, e alguns próximos vieram em socorro. Fiquei paralizado; o meu maior medo havia chegado, pelas mãos de algum fanático que, por mais violento que fosse, também possuía uma família, um alguém para dividir uma vida. Ali ele tinha conseguido destruir a minha única família, meu único refúgio, depois da morte sentimental dos meus pais e irmãos, depois que descobriram minha seuxalidade, certamente apoiando aquele que acertou um peito aberto, pronto ao diálogo, pronto mesmo para aquele momento.
A ambulância demorou a chegar. A polícia fazia pouco caso, nem se aproximando de nós, que ali estávamos deseperados. Finalmente a ajuda veio, despreocupada, nitidamente alheia, mas veio. Fomos ao hospital mais próximo dali. Estava ali, sempre a tocá-lo, única forma de ainda percebê-lo vivo, em meio a tantos fios e tubos que o mantinham a respirar, que estancavam seu sangue. Ele olhava apenas, serenamente. Sabia que suas chances eram poucas; o tiro tinha transpassado seu pulmão, causando uma lesão seríssima. Ali também tive a certeza que o amava, e que ninguém, mesmo aquele tiro maldito, iria remover o que sentia, aquilo que estava dentro de mim.
Uma cirurgia foi feita. Os jornais todos enfatizavam que Edwin estava liderando uma passeata quando foi atingido, e alguns especialistas convidados analisavam os riscos de uma atitude como aquela, dizendo que foi algo "precipitado e infantil. Numa região dominada por fanáticos religiosos, o melhor a se fazer era ficar em casa". Malditos! Canalhas! Ficam em casa aqueles que não querem mudar a realidade, os pensamentos e as atitudes. Fomos em busca de aceitação, e recebemos cusparadas e açoites. Estávamos na Via Dolorosa quando o tiro foi disparado. Um enfermeiro veio e levou-me até o quarto. Os médicos tentavam reanimar Edwin, que havia tido uma parada cardíaca. Não tinha mais lágrimas para verter; o único impulso foi o me atirar à cama, tentando eu mesmo revivê-lo, beijando seu rosto. Os enfermeiros me retiraram depois de bastante esforço... foi a última vez que vi a minha vida , respirando.
As manifestações de repúdio ao episódio que ficou conhecido como "O Tiro da Via Dolorosa" foram várias. O governo disse que foi uma "fatalidade";a polícia afirmou que os culpado seriam identificados. Os rabinos oraram agradecendo a Deus pela graça alcançada. O povo... o povo foi com os rabinos. O movimento continua, até hoje, mas de forma bem mais recatada e seguindo os conselhos dos especialistas em segurança. Eu continuo a viver, agora apático, sombrio, sem forças. Sozinho com minhas recordações... apenas lembrando de Edwin... de nossa vida... agora sem graça e vazia. Senhores religiosos e amantes do preconceito, vocês conseguiram!

1 de outubro de 2009

Mais um, Assaltante...

Mais uma noite, tô na correria. Não espero que me entendam... gente como eu é odiada, por Datenas e seus catecismos na Tv, induzindo ao erro e gerando disformidade. É massa assim. Quero mesmo é o medo, playboizada em pânico Gente como eu é realmente odiada. Outro dia, naquela busca que dei na Conselheiro Aguiar, (foi uma noite agradável - Três relógios, umas carteiras e cinco celulares de ponta), aconteceu o previsto: tipo Hobbin Hood. Aqueles filhos da puta tinham muito, e eu, nada. Conquistaram todas estas bugingangas imprestáveis com esforço dos trabalhos bacanas que têm, e eu, retaliando com a facilidade da tecnologia Taurus 380. Não ligavam em perder nada daquilo. Pra eles era tudo merda, objeto fútil, só pra ludibriar os olhos das mulheres que lhe serviriam de escravas numa cama qualquer, de um motel qualquer. pra mim, aquilo servia de passagem. Voltando do trampo, era escambo certo; maconha , vinho e livro, pra relaxar a tensão. Eles tentam esquecer os seus traumas pagando psicanalistas;esquecer o que viram, aquela sensação desconfortável de medo e angústia pelo crime estar tão próximo deles, apontando em suas caras uma morte que não estava prevista, fim da curtição, da balada, do casamento infeliz,da vida medíocre.
Tinha grana naquelas carteiras de couro, e de dia, melhor camuflagem pra gente como eu, fui comprar alguma coisa pra comer e alguns livros. Vi naquela banca de jornal "A Desobediência Civil" de Thoreau. Gostei muito. A abordagem crítica aos governos, a maneira como ele vê e discute o papel das opressões exercidas por estes e principalmente, a tese que quem contribui com seu dinheiro, pagando imposto a um Estado desajustado e corrupto torna-se parte dele é fantástica. No meu barraco a luz é foda, mas eu consegui organizar uma mesinha, que achei no lixo ainda em condições, e um banquinho, também achado. Os livros já estavam aumentando de número, e quando eu chego tenho um ritual que não abandono: tomo um banho com a água que juntei antes de sair, em um balde, faço um pouco de café e leio, até umas oito. Vou dormir um pouco, quando a geral vai trabalhar, e quando acordo dou um trato no parceiro "cospe fogo", e nisso, na corrente sanguínea já alterada, já estou com novas idéias, novos assaltos em mente. Quando chove, fico receoso em perder meu patrimônio ,livros que me acompanham, única coisa que tenho de valor. Decidi que não vou ficar com a Carla. A gente tava curtindo e tal, mas não dá não. O barraco é apertado, e além do mais ela não sabe quem foi Thoreau. Diz que não serve de nada saber destas coisas. "É por isso", disse a ela outro dia, de manhãzinha, uma garoa fina, depois de um beijo, "que o fedor do córrego nunca passa, que os mosquitos nunca vão embora, que as vielas eram imundas, que os moleques tinham grandes barrigas e vez ou outra tinha mãe chorando a perda do filho pra um verme qualquer". Ela não conhece Thoreau. Ela é bem gostosa, transa como uma louca, mas não vou ficar com ela...
A vida é mesmo assim. A noite chegou e tenho que sair; mantenho os meus pontos vitais, minha energia pra respirar, tudo graças ao crime. Nem sei mais se considero crime. Sou um desobediente, vou de encontro à Lei, não a respeito.. e ela, acaso sabe quem sou? Tive a oportunidade de abordar uma fiscal desta lei maldita. Uma juíza. Vinha talvez de alguma festinha bacana, do pessoal do fórum. Sinal fechado, distração tola que só quem não tem preocupação , fome ou falta de grana possui, e ela estava li, na minha mão... aquela porca. Já tinha cumprido 3 anos no Aníbal, processo que não era meu, mas assim foi, por causa de gente como ela.
A bolsa estava na minha, e eu vi que era juiza porque tinha um adesivo no parabrisa do carro, um importadão. Juíza de Direito. O que valia aquela merda agora, porra? Ela tava a minha mercê, cagando de medo; nenhum código penal pra se basear, nenhum meirinho pra socorrê-la; só um branquelo, cor improvável de assaltante, uma 380 e ela, se eu quisesse, morta. Não ia errar daquela distância. Deixei aquela vagabunda viver... sabia que eu poderia encontrar com ela em algum tribunal destes, ela togada, eu fudido. Mas a vida é mesmo assim, e eu aproveitei a minha chance.
Tô voltando pra casa, pistola nos "quarto", um livro novo. Rousseau. Novas idéias, novos assaltos... é... a vida é assim mesmo.

Um Estranho Chamado Albert...

Albert havia sido levado por uma ambulância perto das 02:00 da manhã. Não se sabia ao certo o que tinha. É claro que vinha há alguns dias apresentando características estranhas, mais do que o normal. Ele sempre foi bastante esquisito, desde sua infância. Hoje tinha 31 anos e estava assim, doente, irreconhecível. O conheci no colegial, na Edgar Allan Poe High School, no Kansas, de onde somos. Nunca foi um garoto tranquilo. Andava sempre pelos cantos, rejeitado pelas pessoas, levando consigo aquela prova de sua doença, esta que hoje se agravou: Kafka. Nunca o largou. Em todos os lugares, era visto com aquilo, e não reprovo as pessoas por não sentirem prazer em sua companhia; livros são tão estranhos! Além deste tal polonês, outros eram vistos com ele... na escola, era medíocre nas aulas, tirando 10 em tudo. Matemática, Geografia, História (gostava muito de História) , Filosofia, Literatura, manjava tudo, e em todas era igualmente imbecil. Todos nós, o restante da turma, íamos muito bem, quase sempre o zero era unanimidade, e os professores sempre acharam o Albert muito abaixo da média. Tinha umas conversas estranhas, perguntando sempre onde havia alguma bilbioteca... "isto e coisa de malucos, cara!" eu dizia, " não vale a pena você perder sua juventude com isto! Se você continuar assim, nunca vai ser ninguém, ser normal". Ele nunca ligou para o que eu disse. Queria mesmo era se fuder.
A Universidade foi traumática. Foi aprovado com láureas nos preparatórios, uma tremenda merda. Nunca vi uma pessoa ser tão insistente em ser idiota, a ponto de ler, ler, ler e ler sem parar. Ficávamos no mesmo quarto, e as garotas vinham de vez em quando para se divertir com os caras da nossa ala. Albert nem era cogitado para a festa. Aquele seu jeito débil era aviltante; não dava pra ficar quieto quando ele falava de livros e dos benefícios do conhecimento. Ha ha ha ha! Ele estava pirando e nem se dava conta... quem liga para isto? Ser uma pessoa medíocre, sim, deveria ser a meta de todo cara normal, íntegro. Questionar, usar o tal "senso crítico" que o Albert tanto invocava, perder tempo adquirindo coisas que os médicos todos já dizem serem doenças prejudiciais e crônicas, sem cura, que levam ao ostracismo, ao esquecimento social, à derrota na vida, putz! A gente não estava percebendo que o Albert estava se perdendo, caminhando para o abismo desta tal "inteligência" ( que palavrinha mais nojenta e absurda!) , e todos os caras que ele lia tinham ido pelo mesmo barco furado. Mas não sei por que, eu gostava dele assim mesmo, genial. Tinha pânico só de ouvir as palavras "normalidade", passividade", "mediocridade" , " pusilanimidade". Era um barato curtir da cara dele dessa forma. Parece que eu estava sentindo que ele iria surtar, não ia mais aguentar aquela vidinha besta de curioso, de observador, de gente doida mesmo, estas que lotam os sanatórios por aí - os intelectuais, os questionadores, os cú-de-ferro, os "nerds" - estes caras têm mesmo que estar à margem, distantes das pessoas que só querem viver de forma tola, frívola. Sim, frivolidade! (Estava querendo me lembrar desta palavra... ouvi o padre me dizer que ser frívolo é estar mais perto de Deus... não entendi muito bem mas achei que soava legal... Deus me livre entender!!! Isso é coisa para o Albert, por isso ele foi levado).
E agora esta merda toda acontecendo com ele. Sempre nos encontrávamos depois do trabalho; fazíamos isso sempre, desde que saímos da universidade (eu consegui um bom emprego como catador de papéis e recicláveis... anda a me render uma boa grana... já o Albert tornou-se PhD em astronomia e chefe do departamento de Astrofísica da Universidade... Pode isso? O pior emprego que alguém poderia querer... se chamado de incompetente, de retardado o tempo todo, e não ganhar dinheiro! Que figura estranha esse Albert!). De repente, o cara começou a falar coisas malucas, doidas , dizendo que ele estava certo, que aquela vida que tinha de conhecimento e reflexão sobre o que acontecia e as leituras dos clássicos e outros livros eram a "maneira ideal de mudança da realidade, dos costumes imbecis e frívolos que as pessoas tinham" além de nos dar conselhos indecentes como " leiam mais e mais, se instruam, vocês também podem lutar contra o sistema de coisas que nos afligem, que nos acuam" . (ainda bem que ali não estavam alguns dos nossos mais ilustres mestres, os políticos e bispos... ficariam escandalizados).Alguém que estava conosco pegou o telefone e ligou para o Instituto de Psquiatria e Estudos das Pessoas Inteligentes e Conscientes do Kansas, referência nacional em casos como o de Albert, que logo que soube do caso mandou uma ambulância, com enfermeiros preparados para este tipo de ocorrência, que o detiveram ainda a falar sobre " revolução intelectual , consciência de si e do outro, que senso crítico seja a nossa salvação!" estas coisas que nós, os homens de fé e de espírito medíocre nem gostamos de ouvir, de tão asqueroso e doente que parecem soar. Viemos todos ao hospital, e aquilo parece que despertou a curiosidade de toda a cidade. Várias eram as emissoras de TV que acompanham os últimos boletins médicos, e só eu pude entrar e acompanhá-lo. Nem família o maluco do Albert tinha mais... fora expulso por suas "idéias", seus "argumentos", e eu entendo seus pais... não é fácil ter alguém assim em casa. O médico esteve aqui à pouco e disse que o caso dele é gravíssimo, sem solução. Estava realmente com aquilo que todos estávamos temendo... Inteligência sub-humana, sagacidade, sensatez, senso-crítico aguçados, percepção espantosa da realidade, além de agudeza de raciocínio e forte inclinação para influenciar outras pessoas a desenvolverem estes sintomas. Chorei quando o doutor disse que ele jamais seria um imbecil, um tolo, um... frívolo... tapado e manipulavel... Estava condenado ao ostracismo, ao esquecimento e à solidão social que só estes distúrbios mentais podem proporcionar... Nunca mais o verei, e confesso que isso foi bom... não dava mais para correr tantos riscos... Pobre Albert...