5 de julho de 2009

Os perigos da Ortodoxia

Numa tarde de sábado, estava eu sentado num banco de praça, aqui perto de minha casa, ocioso. Aproximou-se de mim um jovem, eu diria um menino, com seus 16 anos, trazendo consigo um livrinho familiar a qualquer ocioso das praças por aí: A bíblia. Logo imaginei duas coisas: 1 - teria que exercitar mais uma vez minhas noções de educação e , 2 - minha falta do que fazer havia acabado. Não chego a fazer o que a maioria das pessoas costuma - repelir estes jovens pregadores - do contrário, sinto-me no dever de travar algum diálogo interessante (quando é possível), sempre prezando pelo bom senso e pela discrição. Claro que a coisa muitas vezes toma o rumo de um monólogo, quando eles tomam a palavra e não a concedem mais, mas eu insisto, e algumas vezes pude retirar algumas conclusões. Este caso que trago foi o mais medonho e triste que vi nos últimos tempos. Como disse, o rapaz aproximou-se e disse: "posso ler a palavra de deus para você?" É estranho que os deuses sempre precisem de porta-vozes para falar por eles, e estes possuem toda uma técnica, toda uma abordagem enfática para envolver os ouvintes. Permiti que ele desenvolvesse seu raciocínio, e imediatamente falou-me sobre o pecado. Citou alguns versículos que traziam o ser perverso que o homem havia se tornado, suas ações bestiais e, consequentemente, o fim que este pecado trazia à pobre alma contaminada por tais feitos: o inferno. Causa-me novamente estranheza que o merchandising judaico-cristão sempre traga a parte ruim da coisa. Dá-se mais vasão ao inferno, aos poços de fogo e enxofre, ao demônio flamejante com seus auxiliares não menos cruéis, ao ranger de dentes, ao afastamento de deus, á tragédia e ao medo, do que os benefícios que uma possível conversão poderia trazer. Com uma certa lógica o procedimento deveria mesmo ser este. Como a monotonia de um lugar onde as pessoas cantarão louvores por toda a eternidade, onde o sexo e os vícios não são tolerados, nenhuma baderna, nenhum tipo de contravenção, pode atrair qualquer ser racional, principalmente jovem? Mas como não queria interrompê-lo naquele momento, deixei estas considerações de lado. Quando finalmente foi-me dada a oportunidade de algumas réplicas, fiz com ele uma transferência de situação para formular uma pergunta. Pedi que ele visualizasse a si mesmo tendo uma visão, uma revelação divina, sendo arrebatado, ou algo do gênero. Neste momento, o texto a ser dito pelo mensageiro de deus é o mesmo daqueles relatados pela bíblia, afirmando que ele era um bom servo, sem qualquer mácula, o ser ideal para fazer a vontade dos céus sem questionar seus valores, sua aplicabilidade ou mesmo sua decência. Então esta voz tremenda ordenava que ele deveria ir até a praça mais próxima e matar o primeiro ser humano que encontrasse ( como disse, os motivos não precisam ser ditos, primeiro pela cega convicção de que deus sabe o que é melhor para sua criação, e segundo que não seria muito divino explicar à criatura os propósitos do criador). De maneira crédula e fielmente convicta, aquele garoto, agora tomado pelo orgulho de fazer parte da grande corporação dos santos obedientes e igualmente imbecis do reino dos céus, parte em busca do cumprimento do dever celeste. Adentrando na praça mais próxima, como havia predito o Senhor, ele encontrasse a mim, uma pessoa que ele jamais havia visto ou cumprimentado na rua, que não conhecia o nome, a origem, a estória de vida, a família, os filhos, os planos, os projetos, as realizações; não sabia nem mesmo o que estava fazendo ali, naquela hora. Nada disso havia sido revelado junto com a missão, talvez por pura crueldade ou mesmo por esquecimento, mas não importa, o que havia de ser feito, deveria ser feito. E ali, diante do alvo escolhido, num segundo de lucidez, eu quis que ele me respondesse: " Você me mataria e cumpriria o propósito de deus na sua vida, sabendo que o efeito de tal ação o levaria à cadeia por um longo espaço de tempo, e consequentemente traria a desgraça à sua própria família, amigos, etc?"; ele nem pestanejou ao responder: " Sim, eu mataria você, porque o Senhor assim quis!" Uma reação instintiva a qualquer humanista seria o espanto, uma reprovação e, automaticamente, a ojeriza e o desprezo ao autor da resposta, mas comigo veio algo a mais. Pesar. Como pode existir, tão próximo a mim, alguém tão jovem com uma mentalidade tão descabida e tola, própria dos homens mais obtusos? Como aquela vida ainda no início estava sendo disposta por alguns "anciãos" e "líderes" a entender um livro paradoxo e cheio de absurdos como algo verdadeiro e "santo"? Por que não existe uma contrapartida ideológica, moral, capaz de trazer a estas mentes um outro lado, menos violento e degradante, que possa impregnar o ambiente de racionalidade básica para se viver melhor? Ter pesar de algúem é muitas vezes ver um estado irreversível e nada poder fazer para modificá-lo, assim me senti naquela hora, e assim me sinto ainda hoje, quando lembro desta triste ocasião. A ortodoxia, em qualquer âmbito, é tão perniciosa quanto um vírus mortal, e mais fácil de ser inoculada nos organismos menos resistentes. Pretendo ser um imunizador contumaz.