27 de outubro de 2009

Inveja

John Kurts era um jovem psiquiatra que ia a pé para Clínica Birken, na Broken Avenue. Morava a poucas quadras dali e preferia deixar sempre o carro em casa. Não gostava de sujeira, nem papel de bala jogava no chão. Era naturalista, vegetariano, bom leitor, fiel à esposa, Mathilde, e não tinha filhos. Queria que sua vida fosse dedicada ao seu trabalho, às coisas que gostava e à mulher, por quem devotava amor sincero. Sabia a todo tempo que Deus o estava olhando, mas não procurava mantê-lo por perto, dentro de si; isso o deixava nervoso.
Seus clientes eram pessoas de todas as classes sociais, atraídas pelo carisma com que o dr. John atendia seus pacientes. Tinha como meta a liviar, de qualquer maneira cabível, o sofrimento que a prisão da loucura causava aos seus dependentes, incapazes de fugir aos traumas, às visões, à incongruência terrível que havia se associado entre suas mentes e a realidade. Os cérebros patologicamente normais não mais se interessavam por eles; da mesma forma, aqueles que eram postos de lado pelo grupo sadio não possuía mais qualquer ligação, comportamento ou necessidade de seguir os conceitos e padrões requeridos para se estar bem, saudável, são. O psiquiatra, segundo John, deveria ser estre entreposto entre os dois, mas não sabia muito bem onde o próprio médico estava situado.
Não trabalhava ali a muito tempo, portanto não possuía nenhum paciente em especial. Seu trabalho era inspecionar os internos, que sempre estavam a vagar pela propriedade, uma belíssima área verde, a única que restara naquela região de concorrência imobiliária. Estava em pleno processo de pesquisa para um doutorado e estava pensando em ter um filho, quando, daquela possibilidade de estar tão perto da loucura e das patologias da mente, como um visitante em um zoológico, ficou tonto, sentindo, pensando algo ruim, tenebroso.
Ele recolheu-se, percebeu sua vida naquele momento. Sentou-se em algum lugar ermo e pensou. Tinha 40 anos, e o que ele tinha vivido? Sim, possuía uma módica vida, aliás, uma bela vida; uma mulher adorável, sensata, submissa e capaz, que o auxiliava em tudo, o amava e tinha pretenções de ficar com ele para sempre, seguindo assim os desígnios de Deus ditos no altar. Ganhava razoavelmente bem, não muito, mas o necessário para manter-se; possuía uma boa casa, que conseguia pagar; móveis, aparelhos de utilidade novos, um cachorro. Tinha realmente seguido á risca tudo o que lhe foi proposto. Qual era então o problema? Sentiu de novo um mal-estar súbito,quando viu um paciente que estava ali perto. Ele rasgava uma bíblia, página por página, toda manhã. Robert era um pastor luterano que havia desembarcado ali há 10 anos. Ninguém nunca o visitava, mas a conta de sua estadia era paga regiamente, mês a mês. Sua existência não era mais importante; não viam nele mais do que um desajustado, um homem que havia produzido para as causas as quais acreditava, e que estava incapacitado, por achar que Deus abandonara o mundo à sua sorte. Sua mulher o deixou por um batista, seus filhos o abandoranam, o considerando apenas com a conta do asilo, sua igreja o rejeitou achando que ele estava sendo "revisionista demais". Tudo o que ele cria estava ali, naquele compêndio, e agora tudo havia sido posto à prova, e o pior, havia sido descartado. Por conta desta sua revelia blasfema de rasgar a bíblia, ele foi internado, dando os médicos o atestado conveniente para um homem que não se adequa aos padrões. John lembrava que Deus sempre o perturbou, mas que nunca o renegou verdadeiramente, não tinha coragem, aquela que levou Robert àquele destino. Por que nunca havia desafiado ninguém, pais, irmãos que o batiam, professores que ditava as regras? Robert tinha feito isso. Louco?
Viu , depois que havia se levantado e andava, aturdido por estas reflexões, outro paciente, e de novo outras revelações. Uma mulher, Bertha, se debatia numa grade que dava acesso à rua. Havia tirado o roupão e estava nua em pêlo. Ria dos que passavam, dizendo que eram ridículos, pois fazia um calor dos diabos e eles estavam ali, todos engravatados e com vestidos longuíssimos, não aproveitando a chance de se refrescarem retirando a "casca doméstica" como ela dizia. Vez ou outra parava, e tocava-se. Acariciava seus seios, que eram belos, seus cabelos ruivos e seu corpo bem torneado; John via tudo, e mais uma vez a injeva o consumiu. Tinha pensamentos ocultos, sexuais, que não realizava. Tinha medo do que sua mulher poderia pensar dele; um canalha, um hipócrita por desejar outras mulheres, por pretender outras situações que não incluíam sua amada cônjuge. Mas o que tinha isso de mais? Bertha estava ali por pertencer a uma família riquíssima, com vários senadores entre eles, mas que prezava acima de tudo pelas aparências sociais, coisa que sempre era maculada com algum escândalo descoberto. Ela, uma jovem com um futuro acadêmico promissor, tinha um gosto excessivo pelo sexo, de preferência com vários parceiros de uma vez. Sua reputação começou a declinar na universidade, quando suas aventuras começaram a ficar explícitas. Tinha um currículo excelente, mas era uma "vadia em potencial", diziam os alunos. Acessos mais frequentes de depressão e uso de barbitúricos se sucederam, até que pela prmieira vez ela tirou a roupa diante do campus enfileirado em alguma solenidade importante. Foi expulsa daquela renomada instituição, e sua família a internou para que "recobrasse sua consciência". Desde então estava ali. O sexo era realmente um tabu, uma forma de transgressão que poucos tinham a ousadia de experimentar. John era um destes. Uma vida sem satisfações sexuais, sem ousadia, um mormaço discreto. A loucura era um mote, um motivo para se libertar? Onde estava a vantagem em ser são, medroso e limitado? O dr John Kurtis estava chegando perto da resposta.

Continua...