9 de agosto de 2010

Crônicas Malfadadas do Jovem Capistrano - Do convívio social e o que esperar dele

Meu prédio situa-se numa movimentada rua do centro. Nem sei porque diabos vim parar aqui; todo este circular de gente desconhecida me deixa ainda mais solitário, mas uma solidão estranha.
Ninguém torna-se averso às pessoas por acaso; penso mesmo que, quem decide viver recolhido dos outros na verdade é a pessoa mais sociável que possa existir, pois não trava vivências com qualquer um, como a maioria. Animais como estes foram espremidos, marginalizados, levados a um exílio forçado pelas tolices que o mundo costuma oferecer aos pensantes, aos auto-críticos; eu bem que poderia estar agora mesmo, um sábado à noite com clima tépido, num pagodão suburbano, bastante comum nesta região da cidade, e verificar in loco as fêmeas todas, suas lascividades e interesses econômicos, movimentando o capital daqueles que querem gastar com uma boa bunda o seu mísero salário mensal, mas, pensando bem, é preciso mesmo um alto desprendimento antropológico para encarar tal tarefa, além de ser bastante tolerante e, se quiser, imbecil e neurastênico. Compro o pão e volto ao meu apartamento com a firme convicção de que fiz a escolha certa, vendo tudo pela janela de casa.
Naquela noite a campainha tocou. Nunca esperava visitas, ainda mais naquela hora. Seguia a perfeita lógica de que, se eu não tinha amigos próximos o suficiente para me abordarem em casa com suas visitas, eu poderia estar relaxado sempre, pois aquele evento jamais aconteceria. Mas naquela noite aconteceu. Alguém descobriu meu endereço, tocou a campainha, e esperava uma resposta minha; a única coisa que poderia fazer era olhar quem havia se atrevido a tanto. O olho mágico me revelou uma mulher loira, bem vestida e com ares de impaciência. Uma mulher... que porra é essa? Não tinha seguro, plano de saúde, não havia chamado nenhum testemunha de jeová para me guiar em algum estudo bíblico... uma mulher... olhei novamente e era mesmo uma mulher, loira, bem vestida... a campainha tocou novamente, e eu não poderia mais aguentar aquele barulho infernal. Entreabri a porta.
- Capistrano?
- Sim, o que deseja?
- Não lembra de mim?
Por que as pessoas sempre têm que recorrer a esta metodologia cretina de aproximação em uma situação esdrúxula como aquela? Claro que eu não lembrava dela! Não lembrava de ninguém com quem por ventura houvesse me relacionado, em qualquer âmbito sociológico, nas últimas duas semanas, e ela parecia estar vindo de um lugar muito mais longuínquo do que este.
- Não acredito que você não esteja lembrando de mim, Capistrano... sou eu, Júlia.
- Júlia? Não conheço nenhuma Júlia...
Claro que eu conhecia Júlia. Ela era uma colega de classe nos tempos da universidade. Bonita, corpo agradável, perfume caro e oloroso, mas intelectualmente fútil e tola, esta espécime sui generis tinha a aspiração imbecil de ser uma atriz. Era risível. Bastante popular entre os machos do bloco onde estudávamos, ela sempre arrancou sorrisos, lanches, suspiros e más intenções de todos ali, ávidos em pelo menos tocar suas ancas ou ver algum lance de decote ou calcinha; era a única coisa que teriam dela. Sua superioridade estética era incômoda para o restante das garotas, e se algum cara discursasse, de maneira bastante falsa, que não via sentido em toda aquela adulação, era um forte candidato a ficar com algumas sobras daquilo que os outros rapazes não tinham qualquer interesse.
Abri a porta e deixei que ela entrasse. Não havia mudado muito desde que nos vimos pela última vez, na colação de grau. Ela, como sempre, exuberante, um modelo aceitável de uma padronização do belo no ocidente; não se espantou ao ver que eu morava num casebre vertical, os móveis todos rotos, roupas íntimas jogadas a qualquer canto, pontas de cigarros e restos de pão recém devorado no chão da sala. Sentou-se e começou a falar, sem pausas, como era o seu costume odioso:
- Capistrano, me disseram que você estava morando por aqui, então resolvi fazer uma visitinha... sabe queels planos de me tornar atriz? Você sempre me ajudou tanto...
Ah, não! Puta que pariu! Mas que droga de mundo é esse?? Algumas vezes uma lição é apreendida de forma bastante rápida e indigesta, e aquela maldita porta jamais seria aberta novamente para uma mulher , seja lá quem for, mediante influência dos meus hormônios.

continua...