26 de setembro de 2009

Manifesto em Defesa da Guerra, do Fracasso e da Burrice

Não entendo por que as pessoas odeiam tanto as guerras, na mesma proporção que não gostam de ser comparadas com gente burra e fracassada, que não vence na vida. Isso prova que não há mais reflexão, não se percebem as coisas. A guerra. Toda mudança estrutural, econômica, jurídica, social, religiosa, mítica, literária, é oriunda de uma boa guerra. Criticam-se os costumes atuais, mas como mudaremos o mundo sem guerras? As esperanças se renovam, a vida torna-se mais dinãmica, novas tecnologias bélicas surgem , e como a morte está sempre atrelada à vida, novos medicamentos e soluções para tornar a vida dos soldados mais longa, a dos feridos menos dolorosa e da população mais afeita ao trabalho, muitas vezes árduo.
A burrice. mendigando um espaço, sempre descartada. O que seria do gênio sem a burrice? Para manterem-se, os grandes necessitam do imaginário tacanho das imensas massas ignorantes. O discurso (dos mestres, dos deuses, edir Macedo, Silas Malafaia, Caio Fábio, R.R. Soares, etc), na maioria das vezes tão obtuso e ininteligível que nem em mil anos se pode prever o que foi dito, fica mais leve, mais coerente, mais universal em terreno árido, seco, improvável de semear e dar fruto. Concepções, fórmulas, axiomas, teoremas, fluxogramas, religiões, tudo isso está intimamente atrelado à burrice. Não temos gênios, temos interlocutores burros.
O fracasso. O sucesso é o caminho mais curto para se obter felicidade, em todas as áreas. Se você é universitário, seja qual botequim for a instituição, você tem chances de ter sucesso. Se você prega bem, provavelmente vai ganhar dinheiro. Se não comete pecado e acieta a jesus, terá galardões no céu. O sucesso é o caminho. Mas o que seria do sucesso sem o fracasso? Como posso medir meu nível em algum "sucessômetro" disponível, se não olhar para o lado e ver em qual nível de fracasso o outro se encontra? O fracasso está dentro do sucesso, e vice versa. Alguns dizem "Você é um cara de sucesso, mas poderia estar bem melhor!". Nítida expressão de cobrança impertinente, que sempre acompanha os grandes feitos. Outros podem dizer " Você conseguiu, hein rapaiz! Ninguém é mais fracassado do que você!" (??) Isto é real, não é inventado. O sucesso e o fracasso, o gênio e a burrice, a guerra e as renovações do homem, tudo isso está acontecendo agora, movendo o mundo e as pessoas. Sábio era o Raul - "parem o mundo que eu quero descer..."

Um pastor, um pai, um canalha (última parte)

O automóvel era outro, do ano, e as atitudes do pastor Tobias eram outras em relação a sua companheira de muitos anos. Não mais a bulinava. Não enfiava mais aquela mão grotesca naquela genitália, agora envelhecida para ele, já tão machucada e cicatrizada, tantas vezes, por aquela mesma mão, aquele mesmo pênis, aquele mesmo homem. Para a devota Marly, era um descanso. Finalmente a velhice, que nem era assim tão aparente, estava proporcionando dias melhores para ela. Não se sentia desprezada, nem mesmo triste; sabia fechar-se em sua dor e , agora, em seu alívio, como um casulo. O velho, diferentemente, estava cada dia mais pervertido. Não ficava em casa por muito tempo. Insistia na mesma conversa dos cultos distantes, dos convites repentinos para pregar, dos discipulados nas casas, das viagens a congressos pentecostais. Não tinha o hábito de renovar as desculpas; não era burrice, era canalhice mesmo; queria que soubéssemos, tirássemos nossas conclusões, eu e a devotíssima Marly, que ainda estávamos ali, dividindo nossas vidas com um monte de lixo. Estava lendo Salinger, com seus campos de centeio; Holden Caufield. Nunca pensei que iria me identificar tanto assim com um personagem de livro. Jesus Cristo não conseguira esta façanha. Eu tinha 18 anos agora, Holden tem 16, a idade não importava, aquilo tudo era eu. Lia-o sempre. Comprei escondido do meu "Bernardo Gui "particular, e, enquanto ele tentava comer a devota Marly, mesmo feia e sem graça,testando nela um novo gel lubrificante, lançamento no mercado, eu lia ,vorazmente. Tornei-me irascível, como Holden.
Meu quarto ficava dividido apenas pela parede do quarto de casal e era fácil ouvir as conversas. Uma discussão prosseguia já a algum tempo; o pastor Tobias, nitidamente embriagado, resolvera pregar para minha mãe. "Deus revelou-me em sonho" disse, "que você, Marly, não é a mulher certa pra mim. Sua indiferença nos trabalhos de casa, sua insubmissão nas posições na cama, essa sua cara triste, como se não fosse uma vitoriosa em Cristo, esse filho que você me deu, estranho, sem amigos, sem namoradas... essa coisa dele não ter namoradas... você acoberta este menino... ele é gay, e você não quer me contar... que ele fosse ateu, porra, mas gay não! Oh, meu Deus... perdoe-me..."
Eu estava ali, ouvindo tudo, e o ódio, aquilo que havia feito meu sangue não coagular diante daquele estrume, daquele bastardo, começou a se manifestar de modo físico, me dando forças; o coração pulsando mais rápido, as pupilas dilatando, os punhos se fechando e a dor... minha mãe... de repente, um tiro. Um grito já sem forças... ele havia errado o alvo... estava cambaleante demais devido à bebida... saí correndo e arrombei a porta; outro tiro... outro erro. A cavalaria havia chegado para Marly, não mais devota, não tinha tempo para aquilo agora; era o real, havia visto a dureza da vida, da sua vida, encravada no rosto daquele homem sujo, bestial, com aquela arma na mão... ela saiu do quarto e tentou chamar a polícia... eu pulei sobre aquele corpo enrugado e podre; era a primeira vz que tocava com vontade naquele corpo, fedido, o álcool havia tomado conta daquilo... consegui derrubá-lo, a arma caiu do outro lado... os sóbrios têm a vantagem da rigidez dos movimentos... o ódio já carcomia meu juízo, não pensei duas vezes... só restavam 3 munições... todas tinham morada certa... corri depois disto, minha mãe a gritar desesperada... saí pelas ruas, até encontrar um lugar tranquilo, longe do tumulto. Alguns dias depois fui pego. Não me arrependo de nada, disse a um jornalista local, louco por desgraças. Estou aqui na penitenciária, já condenado pelo juri, irmãos na fé e na dor do pastor Tobias, morto pelo filho, que ele chamou de gay... Não me arrependo... mãe... eu também não te condeno... vai em paz...

25 de setembro de 2009

Um pastor, um pai, um canalha (parte 3)

A igreja local estava em festa. Eram comemorados os 20 anos de ministério do pastor Tobias, ininterruptos. Hinos, saudações, homenagens emocionadas, fervor nas orações de agradecimento a Deus pela vida daquele santo homem, línguas estranhas, poder. Eu era o único que não estava dançando e caindo ao chão, como um louco? A igreja não era mais minha base, minha referência. Minha "estante", feita de caixas de papelão abarrotadas, embaixo da minha cama, já não incluía a bíblia como livro essencial, bem - vindo. Que bagunça! Que barulho! Como aquilo podia ser a verdade, a razão de viver de tanta gente? O culpado? estava ali, com seu ar impoluto, terno novo, comprado com o dinheiro do dízimo, que ele sempre pegava, e não devolvia nunca. sabia que não havia ninguém que reinvindicasse aquele valor. No centro do púlpito, rodeado por outros tratantes, sentia-se dono daquelas almas, senhor de suas mentes, único mentor . Sempre olhava para mim; e recebia ojeriza em troca, desprezo, nojo. Onde estava a devota Marly? Na mesma localização geográfica do primeiro banco, ao centro. O pastor Tobias não a queria longe do seu campo de visão; não confiava naquela mulher potencialmente adúltera - todas eram, assim estava escrito na palavra de Deus - dizia. Vez ou outra Marly ganhava marcas novas, devido a estas "potencialidades" que ela nem sabia possuir. Muitos convidados e animação, tudo para a glória de Deus. Eu sabia que o grande homenageado não estava nem aí para aquela bajulação tola. Sua vítima mais recente, uma filha de um presbítero íntegro, gorducho e "baba ovo", estava lá também. Novinha, no leite. Fascínora miserável! Que vontade de gritar aqelas palavras, acabar com aquele teatro ridículo, e revelar a mais pura realidade; os anos de solidão e tormento da devota Marly (era sempre assim que chamava minha mãe), dos meus sonhos ruins, das minhas dúvidas, do terrorismo sagrado que era imposto a participar, e da farsa, da pestilenta e degradante farsa daquele homem, miserável e vil, que infelizmente tinha que carregar em meu corpo como prolongamento de sua hereditariedade, e que odiava mais do que tudo; meu pai, Tobias, o pastor. Não aguentei ficar ali, fui para fora do templo; a noite parecia tão solta, e a cada vez que sentia aquele embrulho no estômago, causado pela imagem daquele verme em pose de messias, pelo ar quente e fedido das bocas dos crentes, a gritar hinos e choros a um deus que nunca agradeceu ao espetáculo em sua honra, minha mente trabalhava, queria um fim. Admirava os romanos. Eles não perdiam tempo em degolar aquelas gralhas, que espalhavam um deus bárbaro e incompreensível; os leões, famintos tinham um pouco de indigestão ao final, mas não se ouvia mais tantos colóquios incoerentes depois de uma sessão nas arenas. Bela Roma!
Mais um final de culto, mais uma vez do lado de fora, cumprimentando as pessoas, os irmãos, mais uma vez olhando as novas aquisições da igreja em matéria de mulher. A devota Marly, reunida com as irmãs da sociedade feminina, nem disconfiava, ou se assim procedia nada podia fazer. Aquela noite seria diferente, eu havia jurado.

Continua...

Um pastor, Um pai, Um canalha (parte 2)

Ele sabia. Aquele maldito sabia que eu estava ali, percebendo tudo., resignado. Marly já estava se contorcendo como podia, não havia como escapar daquelas mãos sediciosas, cheias de pecado. 13 anos. Já sabia muito bem o que significava aquela palavra tão usada em todos os tempos por todos os cristãos do mundo. Pecado. Não eram aquelas atitudes bestiais do querido pastor Tobias , centro de equilíbrio e moralidade da igreja, nítidas expressões do erro, da abominação? Quando chegávamos em casa, dos eventos na igreja, era sempre a mesma coisa; melhor dizendo, dois eventos se revezavam com maior frequência: ou ele brigava com a pobre Marly, devota e silenciosa, aguentando os chutes, os tapas na cara, os puxões de cabelo e os xingamentos aviltantes, ou, como naquela oportunidade, mal entrávamos e ele ja estava com o zipper aberto, membro duro, vontade insaciável; Marly suada, nitidamente constrangida, me acompanha até o quarto, liga o abajour, abre a bíblia e me manda ler, atento, versículos que eu já cansei de decorar. Era uma exigência do pastor Tobias; deveria ler a bíblia com assiduidade, jamais me afastando dos seus preceitos, daquilo que estava escrito ali. Este livro sempre foi uma boa fonte de inspiração para aquele idiota . Toda a torpeza de espírito estava ali descrita, pronta, sem rodeios, facilmente acessível e praticável. Não suportava mais ler aquela baboseira toda, ainda mais obedecendo aquele crápula. Agora podia ouvir a cama ranger violentamente, e os gemidos da pobre Marly já não eram discretos como no carro. Não era prazer. Era violentada sempre, e nada podia fazer; era mulher, crente; quem daria ouvidos? Toda a sua vida foi uma violência ao lado daquele marido ríspido e cruel, amante do sexo e do egoismo, e toda vez que ele conseguia cuspir dentro dela, a deixava como um trapo, um amontoado de lixo a transpirar, respirar. Eu sabia que ele vinha depois daquilo verificar se eu estava lendo a maldita bíblia. Sempre me encontrava de costas para a porta, em pleno suplício de ter que mais uma vez fingir que não ouvi nem entendi nada daquilo que se passava naquele quarto, diariamente; deveria ler a palavra , aprendendo e revigorando meu espírito. Modifiquei a decoração do quarto com o intuito de não deperar-me com ele, nunca; sentia a sua presença asquerosa mesmo assim, muitas vezes, quando vinha e dizia que aquele trecho que eu estava absorvendo era "importante para a formação do caráter do crente, do homem de Deus" ; a passagem? Abraão e Isaque, prestes a ser degolado. Aquilo era edificante? Suportar tudo isso durante mais tempo era a última coisa que queria...

Continua.

24 de setembro de 2009

Um pastor, Um pai, Um canalha (parte 1)

O culto havia acabado e logo se seguiu aquela reunião na frente da Igreja Neo-Ultra-Pentecostal da Bênção Divina. Aquilo sempre acontecia, e o pastor Tobias, líder daquela comunidade, ficava ali, agradecendo as visitas e cordialmente cumprimentando os irmãos. Tinha ódio daquilo tudo. Queria mesmo era ir para casa, o quanto antes, transar como um louco com a esposa e devota Marly. Naquele momento de fim de culto, era a única mulher que se apresentava em suas vistas para tal ato. Ficava ali mesmo era para ver uma possível nova presa, alguma mulher nova, de pernas e seios firmes,traseiro suculento, disposta a "tomar a sua cruz" e seguí-lo, fielmente. Tinha este dom. Motivos eram os mais frequentes, até mesmo para a esposa. "Você realmente não precisa ir, Marly. Este culto foi marcado de última hora, e naõ posso me atrasar. Você com certeza vai ao próximo, minha Bênção!" Os motéis da cidade eram o templo de suas pregações, e seu púlpito era sempre um corpo gostoso, de alguma neófita , pernas e seios firmes, traseiro suculento agora nua, agora dele. Naquela noite, do fim do culto, depois de toda aquela tortura para ele, entrou no carro e, acariciando as pernas da mulher, dirigia de maneira imprudente de volta para casa. Eu sempre estava lá, vendo tudo aquilo. Ficava no banco de trás, encolhido, sempre aborrecido por ir à igreja todos os domingos, pela manhã e pela noite, nunca tendo a chance de ter uma folga. O pastor Tobias era uma personalidade no bairro. Homem de vários talentos, nunca trabalhou na vida. Não tem experiência em nenhuma atividade profissional, exceto pregar. Pregar sempre foi a sua vida, e seu pai, decano da mesma igreja e hoje na glória, já o havia prevenido que "o evangelho te dará várias oportunidades de ganhar almas para o reino..." ele sempre esquecia de mencionar os ganhos sobre estas almas, que não precisavam mais daquele dinheiro, uma vez que eram almas, não gente. Aquela mão sempre subia, entre uma marcha e outra, e de vez em quando ele olhava pelo retrovisor, fiscalizando minhas atitudes, meus olhares. A devota Marly, coitada, era a imagem da submissão extrema, burra, imbecil, que sempre era atormentada por Paulo e sua passagem que diz que "o marido é o cabeça da mulher, como Cristo é o cabeça da Igreja" . "Homem manda, mulher obedece", o lema preferido do pastor Tobias, em casa. Na igreja, as mulheres eram "Bênçãos", "Varoas", "abençoadas"; e no reservado da sala pastoral, quando alguma daquelas infelizes tinha alguma dúvida espiritual , provocada pelo discurso obtuso e confuso dos sermões carregados, e a ele se achegavam ... decotes sensuais, saias lícitas, permitidas pela congregação, acima do joelho, pernas grossas, alguns pêlos dourados; se transformavam em sua mente , naquelas cenas que gostava de visualizar, em "putas", "cadelas", "vadias". Ele nunca me pegou em atitude suspeita; nunca percebeu qualquer movimento de meus olhos diante de suas investidas , de suas obcenidades. Os gemidos de Marly começavam a ser perceptíveis, e o pastor Tobias sempre espionava o banco de trás; sabia que eu estava a dormir, tinha certeza, como suas certezas sobre Deus e os planos divinos para o homem. Aquela mão, a constância dos movimentos, as marchas erradas. Nunca dormi naquele banco de carro, nunca.

Continua...

12 de setembro de 2009

A Verlaine...

Nos subúrbios de Paris,
Caminha Verlaine, absorto,
Vida de bardo em sagazes companhias
Escravo do senhor verde que a todos corroía.

Em tavernas imundas, habita o príncipe dos poetas
Saudoso do amigo, que o cãncer o arrancou
Ele mesmo, já condenado ao repouso do pó
Sente-se ainda mais sujo, diante do horror

Diz: "Quero o insulto, prefiro a esbórnia
Como companheira de minhas exéquias,
Jovens esposos convidando minha alma
A juntar-se a deles, em canto solene.

Sentado e já sem forças,
Compreende que o tempo já se está acabando
Uma dor quase suave tem nas mãos
Uma vida que quis, diante de si

Rimbaud! Única luz!
Versos, senhores, de minha única faculdade
Acalentem este maldito em sua última imersão
Às profundezas amargas do líquido salvador

Paris não será mais a mesma
O Poeta saiu.
Vertigem o atinge e o desola
Foi morrer ao sol... ao sol...

Um Outro Samsa (última parte)

Quatro dias. Este era o tempo que a porta do apartamento 725 estava fechada. O porteiro, aquele mesmo atento observador do início, talvez porque fosse um tipo de barata exemplar, não havia notado nenhuma movimentação, quer daquele rapaz, quer de pessoas relacionadas a ele. O sumiço de alguém provoca reações diferenciadas em determinados grupos; no prédio em questão, houve um alvoroço sem precedentes. Por que a ausência de um condônimo traria tanto caos e perturbação? Aquele jovem tão estranho, a começar por sua aparência, heterodoxa, disrítmica. Não cumprimentava ninguém, não ia às festas de final de ano do prédio, nunca pediu sequer uma xícara de pó de café a um vizinho. Pensou-se em chamar a polícia para abrir o lugar, mas depois alguns ponderaram; acharam que qualquer hora daquelas ele iria aparecer. Preocupação puramente irrelevante; o que se queria era mesmo saber se havia morrido, se as orgias e as bebedeiras o tinham levado para o inferno, para o raio que o partisse, para a puta que o pariu, se se veriam livres daquele sujeito tacanho, metido, que não se importava, não se comovia, não interagia com ninguém.
Lá dentro, ainda havia vida. A Tv, ainda ligada, ainda fora de estação, era a única coisa que reagia. O corpo de Samsa estava jogado numa cama imunda, como um defunto. O mundo estava rápido demais, dizia ele. Todo inseto precisa de rapidez. "A vida é muito curta", "o mundo gira, o mundo é uma bola", "o tempo urge" eram bordões já calejados nos ouvidos dele. Entendia que aquelas pessoas, que ele só conseguia ver e perceber através de suas semelhanças com insetos, estavam loucos em procurar sentido para tudo. Suas vidas estavam ali, passando, e o tempo é implacável com quem o desperdiça. Não suportava as formas, os dogmas, os tratados, processos, leis, paradigmas, instruções, vigências, isso ele não tolerava. Via nos vizinhos o nojo que é viver sempre guiado, sempre com as impressões dos outros, as roupas dos outros, as manias dos outros, e a si mesmo vazio. estava cheio, cansado, não via mais graça naquilo. Por que tudo na vida deve ser limpo, ordenado, positivo, por que as pessoas só levam em conta quem tem projetos, afazeres, planos, sociabilidade? Sair e encontrar-se com sujeira e lixo das mentes alheias? Preferiu ficar. Trancou todo o apartamento. Não se viam mais garotas, nada era levado até lá. Quis viver como gente, fazendo as coisas que quer fazer, mesmo que sejam suicidas. Se não temos vontade própria, que porra fazemos aqui? Estava disposto a deixar com que sua fisiologia se extinguisse, realizando sua vontade nele.
Alguns dias se passaram e a porta foi arrombada. os vizinhos logo chamaram a polícia e a imprensa logo chegou, como traças. Todo o prédio deslocou-se para o 725 e ao chegarem ao quarto viram Samsa morto, deitado na mesma posição, de defunto; coisa almejada, buscada . Um bilhete foi encontrado. Dizia que "se fosse para viver como inseto uma vida feliz, preferia descobrir a verdade lá fora ,como homem". Ninguém entendeu. Logo jogaram aquilo no chão e foram para casa, deixando para o serviço público o papel de recolher os cadáveres imprestáveis . Meteram-no em algum buraco próprio para indigentes, e lá sabiam que a sua companhia na morte seriam os mesmos vermes que ele não queria conviver, em vida.

8 de setembro de 2009

Um outro samsa (parte 2)

Quando ele saiu, a pouco, lá estavam eles, a espreitar. Um inseto possui suas características bem definidas, e ele sabia a de cada um dos seus vizinhos. A do 532, ficava sempre a correr pelos corredores a tratar dos assuntos alheios, quase sempre trazendo doença, medo, morte, inúmeros comentários que todos já sabiam - tinham a Tv em casa justamente para isto -. O que aquela mulher achava que era? Uma porta-voz de quem não pediu opiniões? Ele a considera uma barata, que com sua rapidez asquerosa torna o ar insalubre. Ah, o senhor do 457, viúvo e ainda necessitado dos favores femininos. Não era raro vê-lo a espiar as fechaduras em horários de banho, quando as meninas ,moças, mesmo as velhas, estavam a se lavar. Sua falta de pudor já havia sido flagrada inúmeras vezes, mas o velhote era admiravelmente reincidente em seus atos. Um rato. Não era um inseto, mas vivia bem ao lado deles. Um dia quis convidá-lo a sair daquela masturbação psicológica a qual vivia , mas depois retrocedeu. Não iria fazer este favor a tão vil criatura. A do 205 era imensamente provocante, tinha lá suas positividades, mas era tão ignóbil quanto todas aquelas pessoas. Já dormiu com ela várias vezes; dá-se ao desfrute quando desejar, e isto trazia algo bom para ele. Encontraram-se certa vez no mercado, ela com sacolas pesadas para carregar e ele com alguma coisa na mão para levar ao fogo para sua janta modesta. Naquele dia acabou comendo aquela mulher, imensamente puta, imensamente suja, imensamente vil. A cada estocada, um repúdio; a cada gemido daquela maldita, uma vontade de lhe dizer que não valia nada, que era apenas um objeto feio e fraco, disponível agora quando os seus dedos estalassem. cassificou-a como uma mosca, sempre grudada em quem lhe der prazer na cama, trazendo consigo os cheiros dos homens da rua com os quais ela se deitara anteriormente. Era tão nojenta. Transava com ela por pura vontade de submetê-la aos mais degradantes caprichos, às mais toscas experiências, e disso tudo ela gostava ainda mais daquele jovem. Não conseguia entender o porque e tamanha disponibilidade para o ridículo, o banal; era apenas sexo, o maldito sexo que move tudo e todos, sempre.
Voltou para o apartamento e logo ligou a Tv. Um costume que agora não fazia mais tanta importãncia para ele, uma vez que estava tão absorto, tão entregue a devaneios longuínquos. Aquele aparelho nem fazia diferença em estar ali. Havia contas no chão, próximas ao carpete. Foram jogadas pelo síndico idiota que sempre o importunava com detalhes ínfimos sofre os "direitos e deveres dos condôminos, principalmente a moral e os bons constumes". Imbecil. Todos sabiam da sua prática sodomista com o eletricista malhado que por ali visitava os apartamentos de vez em quando. ele cobrava muito caro, mas era sempre o escolhido para realizar os serviços elétricos. Ninguém via que naquela aparência risonha e deliberada, cheia de préstimos e mimos, escondia-se um covarde pederasta infantil, que mantinha a longa data um romance com aquele jovem empregado? Sua mulher ficaria chateada se soubesse. Já estava na janela àquela hora. O chiado provocado pela falta de uma estação definida na TV evidenciava que ali, naquele instante, reinava absoluto o desleixo, o despropósito, a falta de vontade de corrigir atos comuns, como achar alguma coisa para assistir. O apartamento era pequeno e úmido. Quis que assim fosse. Não queria nada muito ventilado ou iluminado. A energia elétrica fazia bem o seu papel artificial, não precisava do sol para nada. Sempre achou que o sol trazia a lume minúcias, e ele odiava aquilo. os livros estavam dispostos de maneira desigual, sem simetria alguma. Volumes grossos e finos, autores nacionais e estrangeiros, todos irmanados, os que diziam muito e os que diziam pouco, os baluartes e os anônimos. Dali daquela janela era possível perceber que tudo naquele espaço já havia sido conferido, sugado, vivenciado, transpassado por ele. Não via mais graça naquilo; estava ficando doente.

continua...

6 de setembro de 2009

Um outro Samsa ( parte 1 )

Havia amanhecido, e as garrafas ainda estavam ali. Mais uma noite orgiástica, mais drogas, mais sexo, mais vivência extrema. Ele parece estar moribundo, encostado num pequeno sofá sujo pelos líquidos expelidos quando não se aguenta mais as ingestões, os vapores. Mirna, Beatriz, Simone. Todas foram embora. O porteiro viu quando saíram, cambaleantes e ainda vestindo suas roupas. Ele ensaia uma recuperação, tateando o caminho que leva ao banheiro, para lavar-se. Acredita que com este ato, o contato corpo-água, poderia livrar-se da dor, limpar algum vestígio de insânia, de putrefação psicológica que estava chegando, já a martelar seu pobre juízo. Gostava daquela vida. Tinha mesmo naquela forma de interagir algo que o mantinha sadio, forte; vislumbrava nos livos da pequena estante os mortos que um dia viveram intensamente, os heróis e vilões que trouxeram forma, estética ao mundo. O prédio onde morava estava infestado por insetos enormes, grotescos. Estes tinham formas, cores, cabelos e hábitos quase sempre moralistas e corretos, como uma boa sociedade exige. Mas, como tudo o que vinha do lixo, fediam, eram pestilentos e transmitiam virulência sem parar. Tinham um manual sempre preso entre os braços, capa preta e páginas douradas. Os corredores dos andares eram estreitos, e o espaço entre os apartamentos era exíguo, logo a vida, que deveria ser particular e de forma nenhuma intrusiva, era dividida no melhor molde socialista. Ele parece odiar estas formas de sociabilidade. Estava cheio, exaurido. As pragas vinham, quase sempre, depois dos seus momentos de embriaguês e sexo, comentar os gemidos, as frases heréticas, os versos ditos, os cheiros e barulhos provenientes da luxúria e da fanfarrice que ele promovia em sua casa. Estava realmente cheio. Já tentara vender aquele cubículo a algum amigo, sem sucesso. naquele dia tinha despertado diferente, com mais sede de viver, com mais ânsia, mas ao mesmo tempo estava mais esgotado do que nunca, fisicamente afetado e psicologicamente estranho. A noite anterior tinha sido excelente. As mulheres , fêmeas insignificantes, vinham libertadas, doces, sorrisos largos e seios á mostra. Duros e suculentos. As pernas, sempre grossas, sempre lisas, sempre aromatizadas, corpos que pretendiam exercer suas funções com a maior possibilidade, enfrentando a matemática convencional das posições e métodos de amar. Ele estava ali, sempre disposto, sempre acordado; não sentia aquelas mazelas que o sol trazia consigo ao amanhecer. Tinha o cérebro inundado por química favorável, estímulos gananciosos mas facilmente repartidos. Não conseguia esquecer uma coisa: As pragas.

Continua...