11 de outubro de 2009

Num necrotério qualquer...

Toda a noite, sempre às 22:00, comaçava o expediente do Dr. Plínio num necrotério qualquer, de uma cidade qualquer. É um serviço bastante útil. Os médicos legistas estavam ficando escassos. Ninguém queria saber do corpo quando morto; todos estavam preocupados com a vida pulsando sem parar nas festas, nos clubes, nas praças. O corpo era mais bem requisitado vivo, de preferência bem torneado e apetitoso. O Dr. Plínio não via desta forma. O morto era a razão do seu trabalho, seu ganha pão diário, e ele via beleza na morte. Quando estava de folga, nem notava os corpos esculpidos e trabalhados que passavam por ele; nem qualquer outro corpo vivo; estava mesmo ligado na morte. Na faculdade, preferiu optar pela Medicina Legal porque todos desprezavam seus mortos, óbvio que havia o choro e o impacto da perda, mas a coisa ficava resumida a isso. Percebeu que o morto era gente, mesmo morta, mas ainda era gente. O legista se encarregava desta última atenção, deste derradeiro cuidado imprescindível a descobrir as causas da partida, do momento do fim. Por muitas vezes ele ficava a olhar os corpos que, na pedra, já nao tinham sorrisos, lágrimas, desejos ou mesmo dor de barriga, mas que revelavam, mesmo assim, algum traço de personalidade; personalidade para ele bastante significativa. Refletia no que aquele pedaço de matéria, já desaparecendo, estava pensando quando morreu; se tinha alegrias, se era desprezado, se se sentia idiota ou infeliz. Um vivo não parecia ser tão diferente assim de um morto; quando viver significa estar atuante, tomar posição, agir, num trabalho constante de cansaço, revigoração e novo cansaço; vive-se, morre-se - de tédio, de amor, de angústia, de sono - e vive-se novamente.
Numa noite, o seu antecessor no plantão havia deixado um suicida para ele analisar. Um garoto, de 25 anos, resolveu que não deveria mais ser agredido, maltratado, humilhado, por ser gay. Um legista deve se preocupar com todos os detalhes, circunstâncias e atitudes que levam aquelas pessoas ao estado que ele os encontra. O corpo possui suas impressões, suas marcas, coisa íntima que em vida não se gosta de revelar, que demonstra o que somos, como vivemos, e porque morremos. Aquele jovem não tinha o esteriótipo corporal exigido pela juventude para ser feliz e bem aceito. Deve ter sofrido por muito tempo. Seu estômago possuía várias úlceras, prova de que não se alimentava direito; era obeso. O incômodo de estar deslocado deve ter posto fim aos seus dias desta forma. Um pescoço quebrado em duas partes por conta da corda que foi usada para enforcá-lo. Fechou-o e o pôs novamente no frigorífico.
Havia também uma garotinha, uns 7 anos, dilacerada pelo pai, morta á facadas. O estupro era aviltante. Mas o Dr. Plínio tinha todas as credenciais necessárias para estar ali, há 25 anos, no mesmo lugar, naquela mesma hora. Não tinha família, mulher, filhos. Era recatado e taciturno. Guardava ainda suas marcas, sua identidade por dentro do jaleco e das roupas surradas que vestia sempre. Também pensava nisso. O que ele tinha a revelar, em vida? Não adiantava muito se guardar, ficar num recato muitas vezes tolo, não ser verdadeiro ou mesmo sincero com quem se convive, não viver a vida como se pretende viver. Num necrotério, qualquer um que fosse, tudo era revelado. O pai da garotinha havia expelido seu sêmen, idêntico àquele que formou sua vítima, naquele pobre corpo franzino. Era horrível mesmo o estupro. Um café e algumas torradas eram testemunhas daquilo; depois dos devidos exames e de uma formulação da causa mortis, o cadáver da menininha finalmente estava em paz, nos braços da morte, e sob os cuidados do Dr. Plínio. Sentiu-se evasivo naquele momento. Ele sabia a verdade, muito antes talvez do que a própria polícia, que dependia dos seus serviços de espionagem cadavérica para desvendar o crime. Podia tranquilamente olhar para o pai daquele anjo e o reduzir a nada. Mas era frio demais para isso. confiava que ela estava bem melhor agora, no nada absoluto, onde ninguém mais iria acordá-la à noite, retirando sua roupa e reduzindo-a a um objeto. Se existia um deus que nos tornava infelizes neste mundo, a morte era este alívio, esta mãe que a todos embala.
O plantão estava chegando ao fim. O Dr. Plínio estava tranquilo; depois da assepsia necessária, tomava um bom banho, vestia aquelas mesmas roupas surradas, sua maleta com alguns compêndios médicos encerrados lá dentro, um chapeuzinho que usava para esconder a careca, e saía, deixando ao próximo legista o trabalho de cuidar daqueles mortos. Ele mesmo se achava um morto... soturno, verdadeiro, em paz...