28 de outubro de 2009

Inveja (parte 2)

Um louco, psiquicamente debilitado, era livre. Antes de mais nada, o maluco revelava ao mundo o seu desvio de conduta, sua indiferença. Neste trabalho, era condenado a viver degredado num desequilíbrio que os sãos criaram, uma vez que ninguém pode ser mais do que os outros desejam. Mais do que um movimento de ordem física, que John achava agora ser nada mais do que o contraditório, a réplica usada pelo doido, a loucura era fruto da sanidade. Os sãos julgam os atos insanos, e aquilo que para os normais parece ser imbecil ou estúpido, como tirar a roupa em público ou rasgar a bíblia, quando repetido, insistido, como só o louco faz perceber, tudo isso se torna ignorado, simplesmente relegando o indivíduo a um estado de ostracismo. Viu que na arte a coisa se processa desta forma, mas que poucos a considerariam algo vindo de um transtorno psiquiátrico; no máximo, fruto de uma extravagância. E a loucura não é isso, uma extravagância?
Na manhã seguinte chegou mais cedo à clínica. Recebeu um comunicado de um novo paciente, Sam, um jovem de 25 anos. O que estava em seu prontuário? Sam vivia a rir de qualquer coisa, mesmo daquelas mais absurdas e terríveis. Filho de um comerciante, órfão de mãe, era apático e misantropo; certo dia havia dito "então é isso?!" e desatou a rir, até hoje. Tinha 16 anos. A intensidade variava muito, mas não se podia ver outra coisa em sua expressão que não fosse um sorriso, muitas vezes transformada em uma gargalhada imensurável. John o observou e aquele garoto desatou por fim o sentimento que vinha provando de todos aqueles pacientes. Tinha agora inveja da loucura, de sua proposta heterodoxa de deboche, de desapego, de agressão ao que parece comum, ideal; Sam era a imagem daquilo que um "transtorno" poderia significar; a vida do Dr John Kurtis não era, em hipótese alguma, melhor do que aquela, mesmo com a inevitável e ainda arraigada noção de que havia sofrimento naquele comportamento. Não havia sofrimento. Eles nem ligavam para isso; possuíam a maneira ideal de tornar a vida leve, tratando tudo como algo sem propósito, sem utilidade. Sentiu-se envergonhado de tratar aquele acúmulo de liberdade algo tão pernicioso, seguindo os cânones médicos. Não foi para casa naquele dia. Resolveu, com o material que já possuía, procurar sua loucura, sua forma de visualizar as coisas, sua casa; sua mulher;sua vida. Invejava agora, sem culpas, todos os loucos do mundo.