3 de outubro de 2009

Recordações de um Amor Desgraçado

A chuva regava o cemitério naquela tarde escura. O caixão descia suavemente à cova com poucos espectadores, os necessários aos serviços funerários e eu. Fomos felizes. Edwin estava morto, e eu continuava a não aceitar o destino que se havia traçado; por que naquelas circunstâncias? Éramos assim tão desgraçados a ponto daquilo acontecer? O que fizemos de mais? Lembro ainda quando estávamos no hospital, aquele cheiro de éter desinfetando o ambiente, aqueles enfermeiros levando-me, separando meu corpo da única pessoa que amei na vida, e que agora fechava os olhos para sempre. Deus para mim nunca foi significante, e daquele dia em diante tornou-se sinônimo de ojeriza e repúdio.
Conheci Edwin na Universidade de Jerusalém. Naquela época, um pouco mais do que hoje, não eram permitidos sequer comentários nos conrredores sobre a atuação de professores gays no campus. Eu participava de pesquisas atômicas para o governo. O então Dr. Edwin Stevens, catedrático de Literatura Comparada, era discreto e fascinante. Negro, um tipo exótico naquele círculo, conseguira seu espaço no mundo acadêmico graças aos seus méritos individuais, independentes e sóbrios; doutorou-se em Oxford tratando de Oscar Wilde e sua prosa. Não poderia ser outro autor. Wilde sempre lhe despertou o interesse; quando estávamos deitados, depois da simbiose a qual nos metíamos sempre, sem avisos, porque sempre era a oportunidade perfeita para o amor, bastava nos olharmos, ou nos tocarmos ocasionalmente, ele lia para mim este trecho célebre do Retrato de Dorian Gray:

"sou de parecer que se o homem vivesse plena e totalmente a sua vida, desse forma a todo sentimento, expressão a toda idéia, realidade a todo devaneio... creio que o mundo receberia um novo impulso eufórico,um impulso de alegria que nos faria esquecer todos os males do medievalismo e voltar aos ideais helênicos..."


Vivíamos desta forma. Um mundo onde a dor não nos importunava, estávamos a salvo do ódio, da malícia, das más línguas, da inveja do mundo, do preconceito do mundo. O recato e a discrição eram requisitos fundamentais para que isso acontecesse, mesmo sabendo que em Israel nada podia estar longe do alcance da Torah e dos seus "representantes". Aquele livro foi o motivo de toda a nossa desgraça. Edwin o temia, não por suas palavras sempre agressivas aos gays, nem pela omissão que ela permitia nos casos de homofobia gritante, sempre levantadas, mas do poder que a palavra possuía. Ele, como nenhum outro, conhecia este poder, lidava com ele todos os dias, tratava destes assuntos quase sempre, e via nos olhos dos alunos, nas expressões das pessoas na rua, o mal que aquela má interpretação causava nas mentes. Não havia regras quando se tratava de desobediência ao livro sagrado, nem aos costumes judaicos.
Os costumes. Manter uma aparência era bem mais fácil do que assumir reais intenções. Um dia Edwin disse que iria de encontro àquilo. Iria usar de sua influência dentro da universidade para desenvolver uma cultura de tolerância, mesmo sabendo que não era possível uma totalidade, uma adesão massiva. Mesmo ali os dogmas dominavam, e os jovens estavam mais dispostos a manterem uma postura homofóbica, mosaica, talmúdica. Temi muito sua resolução, mas não poderia deixar de apoiá-la, afinal de contas também era parte daquela instituição, e também era gay. Mas Edwin queria mais. Não só a questão sexual seria levada à público nesta nova abordagem, mas também o fator religioso da sociedade israelense, principal base de argumento para o preconceito, o descaso e a falta de políticas públicas em favor dos homossexuais. Longe de ser um pedido ou um clamor, o projeto visava a inclusão do cidadão gay israelense nos negócios do Estado; nada mais justo, uma vez que estes eram cumpridores dos deveres com impostos e com as leis em vigor. "Não vamos pedir esmolas ou nos ajoelharmos, como é o costume daqueles que necessitam de perdão ou querem confessar algum crime, o que faremos é o reconhecimento formal da cidadania homossexual como um direito constitucional, que dita que todos somos iguais perante a Lei. Se assim não fomos considerados, deixaremos de pagar nossos impostos. Não seremos cidadãos de segunda classe neste país" dizia Edwin. Sutilmente ele começou a implementar esta discussão em sala de aula, trazendo o debate para todo o campus. Os reitores obviamente questionaram esta postura, e publicamente retrataram o movimento, dizendo que aquela instituição não iria compactuar com tamanha falta de vergonha e desrespeito aos judeus ali instalados. A Ação pelo Direito de ser Gay e Ateu - nome dado ao projeto, ganhava mais adeptos em toda a universidade. Mas as retaliações começaram a acontecer. Edwin e eu fomos demitidos sumariamente do campus, e fui também afastado do governo. Naquela altura toda a imprensa se mobilizava em nossa órbita, e suas demonstrações de parcialidade e até mesmo de deboche, em programas humorísticos e telejornais, irritavam, mas também eram esperados. Grandes corporações judaicas estavam por trás daquelas empresas de comunicação, e tudo o que elas queriam era a desmoralização do movimento. A grande massa nos detestava. Não tínhamos mais aquele sossego antigo, nem para chegar em casa. Nosso muro era constantemente agredido com palavras que mais pareciam aquelas dos tempos nazistas, quando aquele mesmo povo estava na berlinda. Como pessoas que foram taxadas de vermes e piolhos, maltratadas, humilhadas, assassinadas e reduzidas a nada em outros tempos poderiam estar admitindo este tipo de comportamento em relação a um grupo, simplesmente por não partilharem suas posições na cama, ou a forma como o prazer era encarado por eles, ou o deus que eles criam? Dizer que Deus estava zangado e que o inferno era o lugar dos sodomitas eram frases constantes neste ataques.
A coisa tomou proporções assombrosas. Grupos ortodoxos declaravam que iriam tomar atitudes drásticas em relação aos participantes daquela "infâmia contra Moisés". Achávamos que tudo aquilo era medo, receio de que os tempos estivessem a mudar, pânico de que suas instituições, aquelas mesmas tão antigas e tradicionais, estivessem erradas, e que um grupo estivesse se levantando, se organizando contra os abusos da fé que eles instituíram, mantendo-se no poder temporal e espiritual por tanto tempo. Nossa casa transformou-se em pouco tempo em um lugar de peregrinação para aqueles que ansiavam a liberdade, a hora de poderem expressar seus sentimentos, suas vontades, suas paixões, em praça pública, sem com isso quebrar qualquer regra, violar qualquer preceito legal. Uma marcha foi organizada para percorrer os principais recantos religiosos de Jerusalém, numa forma de partilhar os sofrimentos que o preconceito havia causado a uma parcela da população, assim como o Cristo fora rejeitado e humilhado. Este dia não poderá ser esquecido, pela sua audácia e pelo fato de que ali, naquele dia, o grande amor de minha vida foi retirado de mim. Estávamos à frente, com faixas exigindo o fim dos bloqueios aos profissionais gays nas universidades e instituições, quando o tiro foi disparado, atingindo Edwin no peito. Não pude me mexer. Tudo foi muito rápido. A multidão, tanto de simpatizantes quando de algozes, foram dispersadas com o estampido, e alguns próximos vieram em socorro. Fiquei paralizado; o meu maior medo havia chegado, pelas mãos de algum fanático que, por mais violento que fosse, também possuía uma família, um alguém para dividir uma vida. Ali ele tinha conseguido destruir a minha única família, meu único refúgio, depois da morte sentimental dos meus pais e irmãos, depois que descobriram minha seuxalidade, certamente apoiando aquele que acertou um peito aberto, pronto ao diálogo, pronto mesmo para aquele momento.
A ambulância demorou a chegar. A polícia fazia pouco caso, nem se aproximando de nós, que ali estávamos deseperados. Finalmente a ajuda veio, despreocupada, nitidamente alheia, mas veio. Fomos ao hospital mais próximo dali. Estava ali, sempre a tocá-lo, única forma de ainda percebê-lo vivo, em meio a tantos fios e tubos que o mantinham a respirar, que estancavam seu sangue. Ele olhava apenas, serenamente. Sabia que suas chances eram poucas; o tiro tinha transpassado seu pulmão, causando uma lesão seríssima. Ali também tive a certeza que o amava, e que ninguém, mesmo aquele tiro maldito, iria remover o que sentia, aquilo que estava dentro de mim.
Uma cirurgia foi feita. Os jornais todos enfatizavam que Edwin estava liderando uma passeata quando foi atingido, e alguns especialistas convidados analisavam os riscos de uma atitude como aquela, dizendo que foi algo "precipitado e infantil. Numa região dominada por fanáticos religiosos, o melhor a se fazer era ficar em casa". Malditos! Canalhas! Ficam em casa aqueles que não querem mudar a realidade, os pensamentos e as atitudes. Fomos em busca de aceitação, e recebemos cusparadas e açoites. Estávamos na Via Dolorosa quando o tiro foi disparado. Um enfermeiro veio e levou-me até o quarto. Os médicos tentavam reanimar Edwin, que havia tido uma parada cardíaca. Não tinha mais lágrimas para verter; o único impulso foi o me atirar à cama, tentando eu mesmo revivê-lo, beijando seu rosto. Os enfermeiros me retiraram depois de bastante esforço... foi a última vez que vi a minha vida , respirando.
As manifestações de repúdio ao episódio que ficou conhecido como "O Tiro da Via Dolorosa" foram várias. O governo disse que foi uma "fatalidade";a polícia afirmou que os culpado seriam identificados. Os rabinos oraram agradecendo a Deus pela graça alcançada. O povo... o povo foi com os rabinos. O movimento continua, até hoje, mas de forma bem mais recatada e seguindo os conselhos dos especialistas em segurança. Eu continuo a viver, agora apático, sombrio, sem forças. Sozinho com minhas recordações... apenas lembrando de Edwin... de nossa vida... agora sem graça e vazia. Senhores religiosos e amantes do preconceito, vocês conseguiram!