16 de fevereiro de 2010

Tratado sobre a Insolência - Parte IV

Verdade seja dita: o velho padre parecia muito mais um velho conselheiro de uma humanidade longuínqua do que um sacerdote católico afeito à restrições do cotidiano. Um gole de uma cerveja me fez pensar naquilo que havia me falado sobre viver sem limites, opondo-se às cobranças e aos lamentos que eu impunha procurando culpados pela minha desgraçada condição. Alguns amigos de Eduard sentaram-se conosco enquanto refletia, e um deles me chamou a atenção. Um rapaz muito franzino, de cabelos à altura do pescoço, num tom misto entre o negro e o louro, mãos muito magras e um rosto bem vivo, falava entusiasmado sobre um artigo que havia publicado num pequeno jornal anarquista de tiragem medíocre na cidade. Todos riam efusivamente, certamente por mais um fracasso em colocar na mente dos famintos de Paris a palavra de um socialismo já caduco; mas aquela vivacidade, aquele olhar repleto de juventude, que é necessária a qualquer empreendimento de longo prazo como aquele, fascinou-me de imediato. Victor Lambert era o seu nome. Fomos apresentados e à primeira vista parecia que nos conhecíamos há muito; não sentiu qualquer dificuldade em entender o que minha língua trôpega dizia, e o seu assunto predileto eram as estrelas no céu e a anarquia na terra. Era impossível não se encantar com aquele ser celestial. Uma pequena garota o acompanhava, e chegou-se a nós disposta a conversar.
Fomos todos embora, todo o grupo, para um quarto logo de esquina a taverna, para passarmos a noite. tudo estava á mão naquele momento: boas garrafas de vinho, cigarrilhas, haxixe e sexo. Meu titio logo tratou de abandonar-me pelos prazeres disponíveis ali, pois uma bela jovem o atanazava como o demônio; duas moças belíssimas trataram também de sumir às nossas vistas, como relâmpagos; ficamos eu, Victor e a garota. Ele perguntou-me se havia algum dia experimentado o haxixe, disse que não, e ele delicadamente me instruiu, transportando a primeira porção do vapor alucinógeno de sua boca direto para a minha. Depois, segurou o cachimbo para que eu mesmo pudesse tragar a fumaça. A garotinha já estava entregue aos domínios daquela substância, e eu já começava a ceder; a primeira sensação guardei para ser relatada: a sensação de poder, juntamente com o aumento da frequência cardíaca. Tudo parece estar mais impregnado de sentido, ao mesmo tempo que nada se encaixa; tinha em minha frente visões paradisíacas, sempre aumentadas ao extremo por percepções nunca vistas na humanidade. Victor, enquanto isso, dizia-me a origem do haxixe, sua proveniência, e como algumas religiões do oriente entendem esta droga. Disse que na Índia, esta planta era sagrada, pois provinha do deus Shiva, que, num banquete preparado por sua esposa, Parvati, babou diante de tantas delícias postas para ele, nascendo assim a planta milagrosamente. Sensual e fascinante! Como os hindus, povo muito mais antigo do que nós, tinham uma sensibilidade sem limites! Sua influência em nosso cérebro seria a misericórdia do deus para conosco, e se isso for verdade, começo a querer mais esta dádiva. Os efeitos físicos são um tanto incômodos, mas os espirituais são absurdos... a garotinha que estava ali, quieta e sã, de repente retirou suas roupas de baixo e desabotoou a camisa que vestia, revelando dois seios magistrais. Aproximou-se de Victor e lhe pediu, em segredo, algo que confirmei em seguida; ele perguntou-me se eu gostaria de, naquele estado de graça, penetrar a nossa amiga. Consenti de imediato, e ela, observando minhas limitações na cadeira, juntamente com Victor deitou-me em um velho sofá, bastante espaçoso. Não poderia ser tão versátil nos jogos sexuais, então ela dominou todo o teatro, num movimento correto onde a fêmea possui mais poder do que o macho, contorcendo-o, absorvendo-o, liderando a grande marcha do prazer.
Suas pernas eram macias e quentes, seu sexo era igualmente sublime, senti-lo era, naquela condição de dinamismo sensorial, algo maravilhoso, digno de qualquer deus sacrílego inventado. Seus movimentos eram sensuais e deliciosos, e o nosso amigo estava diante de nós, sendo o grande espectador do momento. Depois os dois deliciaram-se diante de mim, e os risos eram infindáveis; aquela sensação era estranha para mim, pois estava sob efeito do narcótico, mas percebi que aquele estado era o real estado do homem, apenas debilitado pelas leis imorais do zelo aos patriarcas e juízes atuais. O homem sempre buscou uma forma de manter-se em conformidade com esta vida sensorial, esta percepção onde as formas, as cores, os sons, tudo deriva do mais puro claustro, da mais distante caverna do subconsciente. estávamos perdendo tudo aquilo para a regulação, para a norma, para os modernos valores claustrofóbicos e sufocantes, mas diante de uma pequena sala, com o modelo apropriado de ingestão de qualquer substância dilatadora, todo o antigo modo de sentimento surgia para nós como um grande arquétipo sagrado; os grandes homens eram os de sensibilidade apurada, visão de águia, de pulsar frenético, constantemente se desvencilhando das amarras, da própria vida consumindo todo o oxigênio da liberdade. Ah, formas antigas! Todo o mundo antigo se passou em segundos, até os dias de hoje, em minha pobre mente despreparada!
Entendi a função dos deuses, suas anatomias, seus significados; eles existem! Suas formas se identificam conosco porque, numa mente de percepção aguçada, a realidad enão se mostra opaca, em preto e branco, como a vemos cotidianamente; os sacerdotes eram pessoas do povo, como os xamãs americanos, mas com a sabedoria alquímica do misturar de ervas, do conhecimento da Natureza em prol da completude da mente; eles viam o real, estas belíssimas sensações que agora presencio, que agora recebo, e dali os deuses foram criados. Toda a Natureza clamou por ser explicada no momento em que o primeiro homem se fundiu com ela, absorvendo-a em vapor, em líquido e em outras formas. Entendo agora as grandes construções, os grandes palácios, tudo o que foi dedicado ao culto, à honra dos deuses; No Egito, os faraós, lideres incontestes de uma grande nação, eram os principais ícones das percepções adulteradas; os sátrapas, os reis mongóis, os grandes impérios sul-americanos, todos estes possuíam aquilo que nós hoje não compreendemos com nossa límpida razão cristã, que proíbe o consumo de alucinógenos. Não pude conter minha felicidade, e também compreendo o porque de tanto riso, tanta euforia; o imaginário torna-se tão plausível, tão presente, que toda atristeza mundana se evapora num instante, dando lugar ao que realmente temos em nós.
Aquilo levou toda a noite, e logo pela manhã, o sol surgiu novamente nas janelas avisando que já era a hora do sacrifício diário da normalidade. Ninguém queria tal acontecimento, eu mesmo estava ainda em processo de despedida de mim mesmo, mas tudo acabou. Contei a eduard o que eu havia sentido, e ele riu bastante, dizendo que a mocinha com quem estava era virgem ainda, e tudo foi muito hilário. Precisava entender o que houve, e sabia quem recorrer.