21 de março de 2010

Tratado sobre a Insolência - Final

O pequeno cubículo onde Victor morava era a viela mais suja que já havia visto em Paris. Notório reduto de prostitutos e ladrões, o ambiente denotava que ali ninguém era bem-vindo. Consegui o endereço naquela taverna em que estávamos, mas advertiram-me que seria complicado aproximar-me do local. A imundície era o mais impressionante de tudo; seres vivos, que se revezavam entre seres humanos, ratos, gatos e cachorros lutavam pelo resto, pela migalha apodrecida de algum alimento. Roupas penduradas em varais ao longo das janelas afirmavam que havia uma tentativa de higiene, mesmo assim o aspecto era detestável. Victor morava no último buraco, por isso tive que, antes de chegar ao destino, presenciar tais fatos, que na verdade me causaram mais ojeriza do que misericórdia. A porta estava entreaberta, e logo estava dentro da casa do homem que havia me proporcionado a primeira experiência de vida válida desde que saí do ventre de minha tola mãe.
O interior da residência não poderia ser diferente do exterior. Nada havia, apenas alguns jornais espalhados, roupas penduradas na única cadeira e um forte cheiro de bebida. Adentrando mais um pouco, vi dois corpos estendidos no chão de um pequeno quarto úmido, e, num movimento voyer, aguardei para proceder qualquer atitude. Victor estava de bruços, enlaçado a um outro corpo, masculino, mas extremamente jovem; ambos estavam dominados por um sono profundo, e resolvi aguardar no cômodo ao lado, o que parecia ser, na melhor das hipóteses, a sala de estar. Não se passou muito tempo e logo os dois estavam de pé, e Victor foi o primeiro a me ver.
- Paul... Eduard... estou surpreso...
- Victor... percebo que o atrapalhamos...
- Não, de forma alguma, Valèry estava saindo. (balbuciaram alguma coisa em meio a um abraço e o jovem retirou-se). Já tomaram o desdejum?
- Há algum tempo. O dia já está bastante avançado.
- Nunca me acostumo com os horários solares, a lua me parece ser muito mais discreta. Convido-os então para acompanhar-me a algum estábulo qualquer para que eu possa me alimentar de feno.
Fomos a um pequeno restaurante,a duas esquinas do pardieiro de Victor. O lugar era bem mais agradável do que onde estávamos; logo nos acomodamos e Victor pediu uma xícara de café e alguns polvilhos, porque isso era tudo o que conseguia comprar com as moedas que trazia consigo.
- Como disse, Paul, estou surpreso com a sua visita. Há algum tempo não nos víamos, desde aquele nosso último encontro. Em que lhe posso ser útil?
- Victor, o procurei para que me esclarecesse o que eu senti naquela noite. As substâncias que me apresentou fizeram-me um bem infinito, suave, como nunca pude absorver em qualquer lugar, em qualquer tempo.Ajuda-me a compreender tais momentos.
- Paul... o que presenciastes nada mais é do que a tua própria essência, o teu próprio mundo interior. Cada experiência é única, não há qualquer conexão entre as diversas formas de sentir o que está encravado em nós mesmos. Minha vivência não é a sua, e a do mundo inteiro não é a nossa. As substâncias são só pequenos ingredientes, não são a própria visão em si. Tudo que sentistes veio de ti, de teu âmago, e quando quiseres, podes ter as mesmas sensações novamente.
- Eu sempre vivi em busca da vida, em plenitude. Deus resolveu brincar comigo e me pôs em corpo inválido e degradante, mas, como velho e senil, esqueceu de meu cérebro, minha alma. Este pequeno órgão, naquele dia, foi inundado por vida, imagens fabulosas, tempos distantes; pude viajar aos mais remotos pedaços do universo, e sei que não posso me mover com tanta graça numa cadeira com rodas. A vida é isso? Este frenesi?
- Certamente, mas ainda te faltam os movimentos corporais, que possues, senão como foste capaz de dar tanto prazer a nossa pequena amiga? O aprimoramento dos músculos, a carne que não se move por pura preguiça, eis o teu mal. Teus nervos estão enguiçados pela forma como nasceste, mas isso não te impede do prazer, então, que viva com o que tens! Quanto a isto, podes contar com a ajuda dos amigos que sempre estarão perto de ti.
Victor estava realmente disposto a me enclinar para um entendimento fantástico. Viver, no sentido estito do termo, era simplesmente utilizar-se do que temos, daquilo do qual fomos munidos, e o resto se arranjaria plenamente. Algum auxílio poderia ser utilizado, mas nunca isto poderia substituir as percepções que temos em nós mesmos, em nosso interior. Isso se parecia muito com o discurso do padre naquela manhã, quando me dizia que a vida deveria ser constantemente experimentada. Pensei bastante naquele homem e sua batina surrada, observando-me com um olhar cálido e penetrante. Não, Victor não poderia conhecê-lo.
- Sim, conheço-o muito bem, Paul. o padre Jean Pierre sempre foi um confidente adorável. Encontrei-o pela primeira vez em um sarau nas proximidades do Sena, onde um rico comerciante havia recrutado mendigos nas praças de Paris para serem servidos em um grandioso banquete. Sabíamos, os mendigos, que aquilo era mais uma demonstração hipócrita de apreço aos pobres, mas lá chegando, esta figura singular, com sua mesma batina surrada, conversava com alguns homens ilustres, e quando chegamos, ele nos olhou com bastante simpatia. Aproximei-me, e ele, num gesto doce, afagou meus cabelos e perguntou-me onde eu vivia. Disse-lhe, e ele convidou-me para passar alguns dias em sua casa, nos arredores de Bagnolet. Disse que havia se encantado com minha aparência, mesmo suja e maltrapilha. Sua casa era discreta, e ali passamos momentos agradáveis de leitura, comida, bebida, alucinógenos e sexo. As árvores que rodeavam a propriedade davam ao ambiente um ar bucólico, e passeávamos diariamente, á tardinha, conversando sobre música, filosofia, arte, mulheres e homens. Sua vivacidade, apesar de já possuir uma idade que o desqualificaria para tais cotidianos, era fantástica. Era vívido, sagaz, extremamente irônico e inteligente. Fomos amantes, amigos e confidentes; ele ausentou-se por alguns dias em uma paróquia distante, e fiquei em seu lar, cuidando de tudo. Uma manhã, disse que não queria me ver mais, que eu estava pronto, nunca mais precisaria mendigar o pão da vida, a água sagrada, pois já sabia que viver, em sua mais completa intensidade, era a salvação do homem. Fui embora e vim para as ruas, mas renovado, sentindo todo o ensinamento daquele grande sacerdote, não de Cristo, mas do Homem, do que pode alcançar o homem, das suas possibilidades. Onde você o conheceu, Paul?
Fique atônito por um tempo. Victor, com seu relato acerca daquele velho padre, me despertou do grande sono. Aquele homem era a chave, o segredo, desde o início; minha revolta não poderia ter me feito tanto mal, e cego pela fúria não pude perceber o quanto a verdade foi jogada em minha face, de forma bem maneira. Aquele padre, disfarçado certamente de operário de Deus para sobreviver e possuir o tempo necessário ás sua incursões intelectuais e amorosas, tinha encravado em si o motivo, o grande motivo da existência. Já havia passado muito tempo desde que o vi naquela igreja, e convidei Victor para irmos até lá, numa pequena visita. Em pouco tempo, estávamos diante da porta que nos separava daquele homem.
Entramos. Pessoas ainda saíam da igreja, pois a missa havia terminado há pouco. Alguns sacristãos estavam a limpar o altar recém utilizado na matança do Agnus Dei, e Victor, muito gentil, perguntou a um dos rapazes:
- Onde podemos encontrar o padre Jean Pierre?
- Senhores, creio que não são daqui, apenas nos visitam, o que é uma honra. O padre Jean Pierre encontra-se enfermo em sua residência paroquial, atrás da igreja. Já providenciamos que a extrema unção fosse ministrada, inclusive. Se quiserem, posso acompanhá-los até o quarto, as visitas estão proibidas, mas vejo que são de longe, então posso fazer esta exceção.
Seguimos friamente para a casa, onde o corpo daquele homem jazia em uma cama simples, iluminado pela luz externa que vinha através de uma janela ampla disposta acima da cabeçeira do leito. Um quadro de Jesus Cristo o velava apenas. Parecia confortável, mas um certo ar de incômodo era visto em sua face enrugada; a porta foi aberta para que pudéssemos entrar e ele estava imóvel, apenas olhando para frente. Ficamos dispostos de forma a não incomodá-lo, e víamos sua respiração arquejada, sintoma de alguma infecção respiratória. Ficamos lá pouco tempo, e resolvemos sair e beber alguma coisa. Victor estava reflexivo, como se tivesse acabado de perder um pai; eu, um pouco frustrado, pensei na morte como uma vilã. A contribuição daquele homem foi a maior que qualquer outra pessoa poderia ter dispensado a mim, e aquela forma de se despedir de um libertador era lânguida demais, estúpida demais. Pouco tempo depois, acompanhamos o seu enterro no cemiterio local, cheio de pompas eclesiásticas, e na volta resolvi ficar um pouco mais diante lápide. Victor também acompanhou-me, e garoava um pouco. Nós dois não iríamos mais nos separar, e ali, naquela lápide onde se encontravam as informações do morto para a posteridade, lembrei-me da passagem bíblica, quando o Cristo, diante de sua mãe e João, diz: "filho, esta é tua mãe; mãe, este é teu filho".