10 de outubro de 2009

Diálogos acerca da arte e de um vendedor de Cachorro Quente

O espetáculo começa em instantes. Alguém da produção veio aqui e falou. Não pareço tenso ou algo que o valha, mas não queria fazer isso, pelo menos hoje. O que eu queria mesmo? Biscoito guffs com café amargo e leite. Se eu pedir isso aqui agora, ja já aparece, mas não é a mesma coisa não. Todo mundo está fazendo o que eu quero ultimamente; minha mãe, que sempre me achou sem talento, meu pai, que sempre me achou sem graça, a turma que conheço, e que hoje estava aqui, no camarim, enchendo meu saco pela "bela atuação como o vilão Vinni na novela que acabara ontem"; até a prostituta que comi ontem fez o que eu quis, em troca da minha grana. Esse era o x da questão. Grana. Não sou bonito, mas tenho talento; contra o talento só se levanta um inimigo: a inveja. Os outros são destruídos sem piedade. A revista semanal que circula pelo país inventando bobagens, coisa que todo mundo compra pra ter o prazer de sacanear com quem está ali, disse que eu estava me drogando. E daí? A droga da vida é minha, a grana é minha... tinha um bocado disso na minha carteira, e mais ainda no banco, e mais ainda por vir; o que eu queria agora é estar ali, no lugar daquele cara do cachorro-quente; daqui do alto dá pra ver as menores coisas ... anônimo, uma mosca que ninguém percebe, talvez com suas mazelas, querendo vender uns malditos cachorros pra pagar a luz e o conserto de umas goteiras que insistiam em cair, molhando o quarto do Joãozinho, ou Zezinho, ou o diabo... todo mundo tem problemas. Aposto que ele queria estar no meu lugar agora. Quando viu o carrão chegando, abrindo passagem e quase derrubando seu sustento, sua forma honesta de ganhar grana, no chão. Eu não ganho dinheiro honestamente. Esta arte que eu faço não é honesta. Essa porra é uma ilusão barata, não dá pra viver o que se representa, e todo mundo paga uma fortuna pra ver uma mentirinha cretina contada por um rosto conhecido, que nucnca vai poder ajudar a ninguém quando eles realmente precisarem , ferrados por terem acreditado naquilo que eles viram no comercial, na TV, no teatro, em qualquer lugar onde exista um artista. O artista mente pra ganhar dinheiro, e vive de maneira bestial, sempre vendido, sempre ferrado. Mesmo assim ele queria estar no meu lugar; os olhos dele evidenciaram isso. Acho que ali rolou essa troca. Um fodido querendo renunciar a sua vida medíocre, cheia de infortúnios, pra viver o momento de sucesso e grandeza do cara da novela, do teatro, que ia pra mais uma apresentação de mais uma peça consagrada, uma de tantas que ele nem podia ver... um cachorro-quente era bem barato... só compra sobrevida pra mais uma sessão de chuva , de sol ou de frio na frente dos teatros por aí, mais matéria-prima pra mais cachorros-quentes pra mais sobrevida... só dava pra olhar os cartazes e os letreiros luminosos, as luzes refletindo em sua cara, cegando-o. É isso. Todo mundo ali estava cego. Como eles não percebem que o que eu faço é merda, tolice? As vidas deles são mais importantes... eles não deixam que eu viva como eu quero, submeto-me a eles e eles a mim. É foda! Se eu sair por esta porta e , em vez do texto que eu decorei a duras penas, um textinho ridículo escrito por um cara metido a bosta, eu vomitasse tudo o que estou sentindo, se eu deixasse de ser o ator e fosse eu mesmo, eles ainda iam me aplaudir, dizendo "que magnífico, fenomenal, excelente atuação", as revistas, os jornais, todo mundo que coloca as merdas diárias na cabeça destes idiotas iriam de novo manipular, mentir, inventar coisas, fazer com que tudo aquilo, minha desgraça, fosse apenas arte. O cara do cachorro-quente ainda está ali, uma chuva dos diabos... sua casa deve estar inundada; seus filhos e mulher ali, colocando as coisas pra cima, não deu tempo pra tapar as goteiras, a grana não chegou. Ninguém compra a porra do "hot dog". Quanto está o ingresso desta bosta de espetáculo? Cacete! Dava pra comprar uns 10 cachorros! Falar das misérias humanas, das dores humanas custa caro, e só quem não tem problemas como aqueles tem grana pra pagar o ingresso. É assim. Quem vive na merda não tem dinheiro pra extinguir as goteiras de casa; quem tem dinheiro paga pra ver estas misérias mascaradas, bonitinhas, refletidas em rostinhos ainda mais bonitos, interpretando o que eles veem todo dia na rua. Nem o ator famoso, nem o público abastado têm goteiras em casa, têm? A rua alagou... onde foi parar o cara do cachorro quente, caralho? A chuva é burguesa... retira da frente o que considera lixo, pobre, já utilizado. Acenderam as luzes, o show vai começar... quando acabar esta droga quero um cachorro-quente... bastante mostarda e molho caseiro, por favor.

Uma Carta de Vida e de Morte

H

oje é o meu ultimo dia neste mundo. O mar à minha frente. 23 anos. Todo dia um tempo diferente. A luz já não capta os objetos com a mesma intensidade, lá fora as coisas estão tão comuns. Fui até onde pude. É estranho isso. Nunca quis ir a lugar algum. Preocupações com minha aparência, minha forma de andar, de ver o mundo; nunca fui muito bom nestas coisas, e o resto do mundo sempre foi muito injusto comigo. Se eu não incomodava ninguém, supõe-se que eu também não gostaria de ser importunado. Ninguém me deixou em paz um segundo nesta vida. A começar pelo meu próprio nascimento. Não que a barriga de minha mãe fosse uma boa morada, e que seu útero estivesse gerando ali um fruto amado, esperado. Aquela imbecil sempre me disse que fui um erro, uma distração – o cara que a comeu estava na hora do almoço, não deu tempo dela usar o preservativo – “camisinha maldita! Se não fosse aquilo, eu estaria bem mais saudável, ainda transando e me divertindo por aí, com o meu trabalho, e não aqui, velha, aleijada e com este encosto perto de mim”. Ela sempre repetia isso, quase todos os dias. Quando não repetia, estava tão bêbada que nem podia ficar em pé. Usava a bebida para justificar tudo. Varias vezes a espanquei quando ficava neste estado. Eu, um moleque. Nossa casa ficava um pouco distante das demais e isso me dava a vantagem de não ser interrompido por nenhum vizinho enxerido. Maldita mulher! Meu pai foi este operário atrasado que a penetrou. Nada mais sei dele. Minha mãe também o odeia, mas não mais do que eu. Ela diz que ele tirou sua liberdade, sua beleza, fazendo um “bucho” nela. O que uma prostituta deve esperar da sua merda de vida? Se estava ali para transar com qualquer um, deveria saber os riscos, ora. O mundo é cruel. A mulher que se submete aos cafetões e às ruas não deve ter muita coisa na cabeça. Eu o odiava porque sua cara devia ser suja, corpo e cara sujos, e que poderia estar por aí, zanzando pela cidade usando seu pênis como instrumento reprodutor de outros miseráveis como eu. Sou um acaso. Nem gente eu sou, apenas um acaso, um encosto.

Resolvi acabar com minha vida porque nada muda. Quando se é um mero acaso, um encosto, nada muda mesmo. Cresci um pouco mais, e a circunstância me retirou do convívio daquela idiota da minha mãe. A saúde publica funcionou, pelo menos uma vez, e veio com seus agentes recolher aquela maluca para alguma casa de repouso, sei lá. Devem ter a levado para o inferno, e isso me confortou um bocado. Um alívio tomou conta de mim, mas durou pouco. Uma velha, dizendo ser minha avó, apareceu lá no orfanato e me levou com ela, mas não sem resistência. Queria ficar com as outras crianças, rejeitadas como eu, símbolos de abandono e desgraça. A inocência nunca será motivo para que as coisas ruins deixem de acontecer... só um idiota acredita no contrário. Eu lembro que mordi tanto a mão daquela velha nojenta que quase a arranquei fora; ela era feia, feia demais. No caminho para meu novo lar, a velha me deu umas pancadas no rosto, dizendo a um velhote de cara bem estranha, que dirigia um fusca 68, que sua filha era uma infeliz, e que eu era o motivo de tudo aquilo. Minha mãe também era muito feia. Por que o juiz não escuta a opinião das crianças? Elas não deveriam ter a prioridade de escolher onde querem ficar? E se elas não acharem legal um outro lar, uma outra rua, uma outra gente cuidando delas? Era ridículo tudo aquilo. Uma mulher que nunca vi na vida agora dizia que era minha avó, e que a minha guarda ficaria a cargo dela; mostrou o documento e tudo. Vá à merda! Eu não estava nem ligando. Cheguei em uma casa um pouco melhor que a minha anterior. Aquilo era um pardieiro imprestável. Minha mãe e eu mal conseguíamos nos mexer de tão apertado, lugar feito de taipa e algumas lonas, à beira de um córrego imundo no lugar mais violento da cidade. Todo dia via cadáveres na rua. Já estava bem acostumado com aquilo, e já estava torcendo pra que nesta nova casa eu pudesse continuar a vê-los. Sempre gostei de cadáveres. Assistia a todos os jornais policiais, que traziam os presuntos mais quentes, aqueles que eram e que não eram da vizinhança. Era bem complicado mesmo; eu tinha que ir para a praça do bairro, uns 15 minutos andando, para ver isso. Mal comia,não podia nem pensar em ter uma TV.

Minha adolescência foi vivida nesta casa, desta suposta avó. Nunca achei que ela fosse minha parente. Sabia que ela tirava um dinheiro mensal de algum programa social destes, porque sempre queria saber das minhas notas na escola. Eu era bem medíocre nos estudos. Aprendi a ler com 4 anos, mas nunca demonstrei facilidade pra ninguém,; ficava teimando, apanhando na cara, a tudo suportando, só pra não demonstrar nada a ninguém. Tirava notas baixas de propósito. Quando enjoei daquilo tudo, já estava com 9 anos. Muita surra, beliscões, tapas na cara, noites sem comer. Eu nem ligava. Estava sempre cheio daquela velha cretina e do velhote que morava com ela, sempre se esfregando naquele traseiro flácido. Havia um terreiro de candomblé atrás da casa. Em dias alternados, o barulho era insuportável. Coisa de gente estúpida mesmo. Também havia uma igreja no bairro, e eu sempre ia com uns vizinhos, que insistiam em me levar para lá, numas festas de adolescente; acho que eles não queriam que eu estivesse ali a toda hora, vendo aqueles “demônios incorporarem”. Com os evangélicos a coisa não era diferente. Como eu odiei aquele ambiente, cheio de gente hipócrita e barulhenta. Valiam-se de sorrisos hipócritas e discursos vazios para conviverem “em Cristo”. Grande merda. Eu nunca tinha visto esse tal de Cristo, e se o visse, nem ligaria, não precisava de mais um maioral pra mandar em mim ou naquilo que eu queria fazer. Pra isso bastava aquela catimbozeira nojenta. Como eu tinha ódio daquilo. A religião era sem dúvida um negocio para idiotas, fracotes e bichas. Na escola dominical, que eu detestava mas sempre ia, sempre por causa dos meus vizinhos, eu lia e ouvia coisas absurdas. Já entendia alguma coisa. Segundo aquele livrinho preto, as pessoas se isentavam das merdas que faziam se negassem a si mesmos e tomassem uma cruz. Duas coisas absurdas. Primeiro, quem nega a si mesmo? Eu era tão turrão que morreria defendendo algo. Aquilo era baboseira pura, porque quando aparecia alguém precisando de ajuda no culto, ou necessitando de algo pra comer ou vestir, um copo com água sequer, ninguém negava a si mesmo, dando espontaneamente. Nunca vi isso. Só este Jesus conseguia tal feito. Por isso deveria ter sido o maioral. Segundo, este papo de tomar uma cruz era escroto. Várias estórias daquele livrinho comprovavam que nunca dava certo tomar esta tal cruz; o cara se ferrava todo. Ninguém queria se ferrar, apenas se dar bem, e era dose acreditar naquilo ainda, depois de tanto tempo. Agora eu sei porque fazem tanta questão de encher as igrejas com crianças; elas são bem suscetíveis, impressionáveis , e levam tudo a sério.

No terreiro era a mesma porcaria. Um monte de gente cantando numa língua que ninguém, nem eles mesmos, entendiam, e uma barulheira dos infernos. Cosme e Damião, dois santos católicos, metidos naquela bagunça de deuses iorubás, era ocasião obrigatória da minha presença naquela loucura toda. Uma mixórdia terrível. Aquele gosto pelo inexplicável e ilógico era demais pra mim, mesmo sendo um rapazote de 14 anos. Umas velhas bêbadas completavam a zorra, dançando sem parar. Diziam que “tinham um santo”. Daquele tempo em diante, preferi não acreditar em deus nenhum. Não valia a pena perder meu tempo com aquilo.

E então me tornei um homem, e nada mudava. Não tinha lugar pra ir, nunca. Preferia ir á praia, e ficar lá, sem tomar banho, apenas olhando aquilo tudo. Minha vida estava uma merda naquele tempo, hoje também está, mas naquele tempo era difícil pra mim. Quando ficava pelas ruas, pensando já ali em entrar no mar e acabar com tudo aquilo, nunca conseguia. Se eu fosse morrer com data marcada, sempre disse, quero ser enterrado pelo mar... Tinha sempre que voltar para aquele inferno de casa, e todo dia parecia com o anterior. Um dia foi diferente. Saí de casa com a roupa do couro e uma sandália. Não via mais alternativa pra mim senão optar em viver sozinho, à sorte. Tinha 20 anos, e não agüentava mais aquela sujeira toda, aquela gente cretina. Neste tempo de rua conheci uma garota. Ela era riquinha e tal, e gostou do meu jeito espontâneo e da minha opinião sobre Salinger. Por que gente rica sempre estava atrás de literatura e autores metidos a sabichões? Disse a ela que lia sempre esse cara na biblioteca municipal, no centro da cidade. Era o único mendigo que tinha permissão pra entrar. Lia tudo, e isso facilitou minhas idéias. Ela me disse que estava apaixonada. O que? Mais que droga! Só por que eu li Salinger? Como os ricos eram bestas! Entrei na dela e começamos uma parceria. Disse que eu ia sair das ruas logo, porque o velho dela era um grande empresário e que fazia tudo o que pedisse. Tinha um apartamento á beira mar, e me levou com tudo pra lá. Ela era doidinha mesmo, mas no começo era bem gente boa. Comprou roupas novas, me deu um banho, deu um trato em minha aparência de condômino das ruas, beijou minha boca e falou que estávamos juntos, bem assim. Depois de algumas semanas, disse que eu pertencia a ela. Não gostei daquilo. Como assim eu era dela? Sabia que cachorros tinham dono, galinhas tinham dono, mas gente? Sei lá se eu era gente... pelo menos não era eu ali vestido com aquelas roupas idiotas, da moda. Ela me jogou na cara tudo o que tinha feito, todos os favores. Eu comecei a compreender. Tudo aquilo era somente farsa, hipocrisia, mentira, pra ter alguém com quem sacanear, ter como objeto, escravo. Ela nem tinha jogado a roupa velha fora, disse que ia queimar, a peguei, tirei aquele lixo que estava vestindo, coloquei a minha roupa, única coisa minha de verdade ali, e saí. Sei que tinha muita gente querendo uma chance daquelas... seriam muito felizes inclusive; talvez um daqueles lá da igreja, do terreiro...

Hoje é o meu ultimo dia neste mundo. Já estou certo disso. A frustração ainda me consome... pelo meu pai, que nunca vi; pela minha mãe, chapada e maluca; pela velha, minha suposta avó e pelo velhote que se esfregava nela, sempre; pela igreja, pelo cara da cruz, aquele bobo; pelo santo do terreiro, que nunca entendi a língua. Um dia pensei que não poderia culpá-los. Já que estava aqui, deveria procurar mudar as coisas, viver de forma diferente. As leituras que fiz me disseram o contrário. Sempre tem alguém por trás de toda a merda que a gente sofre. Sei lá. Não ligo mais pra isso. Já chega. Romper com a vida vai significar pelo menos uma mudança. Única. O mar está impaciente... ele e a ressaca vieram com tudo; parece que estava lendo meus pensamentos quando eu ficava aqui, observando seus movimentos. Vi um dia os olhos do mar. Estava chovendo pra caramba, e eu estava tomando conta de um quiosque aqui perto, quando vi seus olhos. Um ponto fixo que a gente consegue captar e pronto, eles aparecem. Talvez porque eu já tenha desabafado tanto com ele, tenha sido minha única companhia em todo este tempo de rua; talvez eu o tenha estimado tanto por ele ter sido como eu sempre fui, sempre o mesmo, com suas tempestades, suas ressacas, suas calmarias, talvez por isso me tenha deixado ver seus olhos, sempre azuis. Às vezes ele era cruel comigo, trazendo uma ventania fria, a chuva com ela... mas quem não tinha sido cruel comigo nesta bosta de vida? O mundo era cruel comigo, e vi que não estive sozinho nessa; muita gente amargurada, chorando por aí. Mas danem-se! Não quero saber desses fracotes. Hoje é meu ultimo dia vivo. O mar está me chamando... talvez volte... o corpo mordido pelos animais marinhos... se tiver sorte, nunca mais volto aqui.

P.S: A quem encontrar estes papéis rabiscados, por favor, rasgue-os ao ler e ponha-os no lixo. Não suje a cidade...