25 de junho de 2010

Um conto para crianças infelizes

Se aquilo poderia ser chamado de lar, eu tinha um. Rua lamacenta, num bairro ainda mais sujo, num agreste destes. Não sei a metragem do nosso espaço privado; era pequeno, fato. Grande mesmo era a miséria, a fome, as caras tristes e mesmo despreocupadas dos adultos. Éramos, as crianças, em oito. A primogenitura coube a mim, e acho mesmo que ser o primeiro é bem triste, porque sempre as impressões, as responsabilidades psicológicas com os demais, as surras, as privações, tudo também acompanha este "privilégio" patriarcal. Acho mesmo que a fome e o frio eram iguais entre todos, não havia divisão ou posição social dentro da casa que escapasse a um telhado cheio de furos, numa chuva de inverno violenta. Se necessito traçar um perfil familiar, começemos.
Meu pai (para não fugir daquela hierarquia dos nomes, sempre o homem em primeiro plano, do paternalismo que já citei) era magro, barbudo, vagabundo e viciado. Veja, tudo está intrínseco, tudo se encaixa. Magro, da fome que passou e ainda passava; barbudo, porque não tinha interesse em aparentar-se com aquilo que não era, ou seja, gente; viciado, pois para isso sempre havia meios de subsistir, de sempre ter mais cachaça, droga, e com isso mais tempo disponível em outro plano que não fosse o da realidade; e vagabundo, porque, segundo ele mesmo dizia, não havia estudado, e o mundo andava difícil para quem só sabia ler e escrever. Neste ponto ele estava melhor do que eu. Nem isso me foi dada a oportunidade, na época, de usufruir. Ele era tudo isso que relatei, e muito mais. Era triste. Este sentimento é tão comum em ambientes como este, que ser alegre nem se cogita, nem se sabe bem o que significa tal palavra; aquele que rir, seja por qual motivo for,leva tapa; é falta de respeito com a situação, com o castigo que foi imposto pelo moço do quadro. Sim, o moço do quadro. Cabelos escovados, a pele bem branca, olhos de um azul impossível de reproduzir, um olhar ainda mais enigmático; parecia que ele tinha pena, e não raiva, da gente. Meu pai tinha o maior orgulho de ter aquele moço consigo.
Minha mãe era bem moça, mas não era isso que dizia seu corpo. Peitos horríveis, mordiscados pelo meu irmão mais novo, feridos e dormentes. Eles estavam sempre à mostra, tentando ainda reagir, exercer sua função sacerdotal de dar o que comer a quem pede, sem muito modo, já que os homens, nas portas aonde ela se abaixava para pedir auxílio, não estavam muito dispostos a fazer esta tarefa a um estranho. Ela também citava o moço do quadro, dizendo que a moldura estava gasta; tinha sido de sua avó, que passou para a sua mãe, no sítio, e agora estava com ela. A provisão era sua responsabiidade, tinha que trazer alguma coisa para casa, para alimentar a prole, enquanto o macho dominante estava em alguma esquina dessas, tomando uma caninha. Ela era ainda mais triste do que meu pai, mas tinha um olhar parecido com o do moço do quadro. Esse moço já deve ter visto muita coisa.
Eu estava ali, e nem sabia muito bem o por quê. Sabe quando você se pega sem um sentido real, nada que possa sustentar a ideia de que você deveria estar onde está? Pronto, era isso. Tinha um cantinho só meu na casa. Havia três cômodos. Uma sala, onde todo mundo dormia, no chão, sem móveis. Um beco, com uma saída que, segundo minha mãe, era a cozinha, com uma mesa de madeira bem velha,desativada por falta de uso prático, e um banheiro, onde só um por vez poderia ficar, e não por muito tempo, com o risco de desfalecer. Mesmo sem comida em casa, o banheiro era bem utilizado. Meu canto era embaixo desta mesa. Meu rato, um gabiruzinho novo, morreu ali, e achei aquilo tão íntimo, que acabei adotando o lugar como meu. Ele procurou um canto onde nem eu nem ninguém pudesse ver sua morte, e talvez o que eu pretendia fazer era justamente o mesmo. Mas morrer é fracassar. Numa situação daquelas, tudo deveria persistir, com a dignidade que desse. Meus outros irmãos eu não vou citar nomes nem posturas. Um infeliz só basta.
Naquele dia tudo corria normalmente, ou seja, cada segundo era uma dor, uma pulga arrancada da roupa, uma tentativa escondida de riso e imaginação com um tijolinho quebrado, que de repente se transformava em um carrinho à fricção visto na TV, na rua, quando todos os vizinhos já tinham sido amolados em busca de alimento. O moço do quadro estava ali, nunca se mexia, nunca piscava, nunca ria; melhor moço não poderia ter seu retrato ali. Era passivo, conformado, inerte, mesmo com toda a súplica de minha mãe, dia e noite, pedindo a ele que o dia não mais surgisse, pelo menos para o caçula, que tinha destruído seus seios e continuava faminto, choroso e barulhento. Nunca pedia nada para ela, minha mãe. Pai estava na frente de casa, numa cadeira velha de balanço, cigarro na boca e meio inebriado. Os meus irmãos estavam na sala, se coçando, (as sarnas não deixavam a gente em paz) quando cheguei com mãe da feira. Naquele dia a cozinha ia ser reaberta ao público, depois de muito tempo. Tomates, que disseram que estavam podres, eram uma iguaria apreciada pelos manos e por mim. Um monte de vagem, onde sobravam ali vez por outra alguns feijões verdes, estava num grande saco, e eu tinha a tarefa de procurar estes remanescentes; uns 10 kg de vagem não davam mais do que 50 feijões. Tudo foi embora em questão de segundos, mas o caçula vomitou o que comeu. Era duro demais pra ele, não estava querendo entrar no rol dos que "comem até pedra".A feira estava cheia naquele dia, muita gente se adiantando nas compras, porque era tempo de copa do mundo. Nem sabia o que era isso no momento . Disseram que era futebol.Tá certo que vi alguns meninos jogando aquela bola de um lado pro outro numa rua em que fui pedir, mas não achava graça naquilo; tinha fome. Não sabia que o mundo perdia seu tempo com aquela bobagem também.
Vou voltar para aquele dia. Meu irmão chorava mais do que o costume. De onde vinha tanta força para gritar, para reclamar da falta, da inanição que tinha? Sobreviver é achar forças onde elas não existem. O único que tinha alguma paz naquela tarde era o moço do quadro. O resto, todo, estava ou ficando surdo com os gritos, ou perdendo a consciência pela escassez do estômago. Mãe não conseguiu mais suportar aquilo e deu o menino para que eu segurasse, e me disse que ia nas redondezas achar alguma alma caridosa que a acudisse com um pouco de leite, mesmo que fosse estragado. Olhou para o moço do quadro, mas sem aquele olhar clemente de antes, e se foi. Os outros seis eu havia juntado na sala, e sentei no chão da cozinha, junto com o pequeno, que tratei logo de soltar, numa margem segura para ele. Sentou-se e continuou a chorar, efusivamente. A porta principal da casa, que era, como todas ali por perto, de madeira e dividida ao meio, foi arrombada, violentamente. A distância desta para onde eu estava era mínima, mas pai passou algum tempo procurando o epicentro de seu tormento, de sua impaciência, esta mesma que ele produziu num instante de pernas abertas à força e de animalidade. Ele, ele mesmo, era o meu tormento.
A gritaria na sala era evidente. Tudo foi revirado e ele não conseguiu achar o caçula. Estava drogado demais. Trouxe para casa uma nova forma de suicídio coletivo. Finalmente seguiu um instante de sanidade e percebeu que o choro vinha debaixo da mesa; a destruiu com um golpe (ela estava podre), e o apanhou pelos pés. Eu fiquei no meu canto, mas não sem minha recompensa por tê-lo feito de imbecil. Um chute na cara dói, e os pés dos pais são ainda mais contundentes. Vi meus irmãos, que estavam na sala, saírem apressados. Também vi aquele homem destruído pelas fugas que escolheu na vida segurar um pedaço grosso da mesa que acabara de destroçar e seguir para o colchão, onde estava o caçula, que continuava chorando como um louco. Não vi o espancamento; não vi o olhar de pai, suas feições, seus pensamentos quando estava fazendo com que o seu filho mais novo se calasse de uma vez por todas. Sempre temos uma oportunidade de aliviarmos nossas frustrações, fracassos e ódios em algo que não reage, ou não quer reagir, que nos ama, ou que apenas está acuado, não tem culpa ou mesmo não tem sorte de estar ali. Ele foi bastante eficiente em não perder a chance.Não vi nem ouvi mais nada. Estava encolhido, no cantinho onde meu gabiru resolveu deixar este mundo, e que agora me fazia uma maldita inveja. Aquele corpo cambaleante saiu correndo pelo beco da casa, madeira na mão direita, a sua mais forte, soltou-a e correu ainda mais. Meus irmãos vieram em seguida; primeiro olharam meu corpo paralisado, depois foram para a sala, e viram outro corpo, mutilado, cabeça estourada, sem ruído nenhum. Eu no começo achei bom o silêncio, mas quando você se acostuma com algo, presencial, sonoro, sentimental, o que quer que seja, é difícil se desvencilhar. Levantei e fui para a sala. A pior coincidência acontece justamente nestes momentos; minha mãe tinha conseguido uma lata de leite, intacta. O homem que comprou para ela se compadeceu de sua situação, num mercadinho a alguns quilômetros de nossa casa,e quando ela agradeçeu ao moço do quadro pela provisão, falando com vergonha, o homem disse que ela não deveria perder tempo com isso; se quisesse, poderia agradecer somente a ele, porque foi o único que ouviu o seu clamor e a ajudou. Ela ficou meio sem graça, mas assentiu . A lata caiu no chão quando ela viu o que eu não pude olhar acontecer. Não quis saber de mais nada, a não ser tirar o moço do quadro da parede e com ele discutir, gritar, perguntando o por quê, qual o motivo. Eu lembro bem que ela pediu aquilo, várias vezes. O moço do quadro não é tão surdo, nem tão displicente assim, afinal. Veio a Lei, e a casa foi fechada. O caçula ficou famoso. Meu pai morreu na cadeia. Minha mãe matou-se, enforcada. Meus irmãos se danaram, e eu continuo vivo, numa destas tramas do Destino, falando para crianças infelizes.

Nota do autor:
Agradeço aos noticiários policiais diários pela inspiração.